sábado, 14 de novembro de 2015

O Brasil caiu na rede



Na cidade e no campo: informações e serviços / Foto: Neide Makiko Furukawa/Embrapa

Por: ALBERTO MAWAKDIYE

Pelo menos em uma cidade brasileira – a paulista Tietê, de 36 mil habitantes e a 131 quilômetros da capital – agendar consultas médicas no sistema público de saúde deixou de ser o martírio amargado pela maior parte da população brasileira. Isso se deve, simplesmente, porque a prefeitura local resolveu adotar, em caráter experimental, um software desenvolvido por um jovem de 20 anos, Vítor Ricardo de Paula. Aluno do curso de tecnologia da informação na Faculdade de Tecnologia (Fatec), no vizinho município de Tatuí, ele pretende usar a ferramenta no seu trabalho de conclusão de curso.

Por meio desse programa de computação, os funcionários da Secretaria de Saúde tieteense, além de agendarem as consultas com a velocidade de um raio, ainda conseguem gerenciar informações sobre o cadastro de ambulâncias, a requisição de viagens, bem como pesquisar o histórico dos doentes. Já os pacientes podem agendar as consultas na unidade de saúde do bairro onde moram, dispensando a ida até a secretaria. “O processo de atendimento nos serviços públicos de saúde é muito burocratizado, pois quase tudo é feito de forma manual. Por que não digitalizá-lo?”, pergunta Vítor, que não recebeu nenhum centavo pela ideia. “Foi o que fiz.”

O projeto de Vítor – que provavelmente será, pouco a pouco, estendido a outras localidades, ajudando a reduzir os graves problemas de atendimento na rede de saúde pública – não surgiu apenas porque ele é uma cabeça iluminada. Vítor pode até ser um gênio da realidade virtual, mas isso de nada adiantaria se a internet não estivesse conquistando um espaço crescente no Brasil e os produtos dela derivados não fossem recebidos, quase sempre, com curiosidade e até mesmo com entusiasmo. Em 2013, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 50,6% dos brasileiros com 10 anos ou mais não haviam usado a internet uma única vez nos últimos 90 dias que antecederam a data da entrevista, mas o país é um dos que mais tem avançado na utilização da rede mundial, cujo serviço, aqui, deixou de ser privilégio das universidades e foi aberto ao público em maio de 1995, portanto, há exatos 20 anos.

Embora ainda esteja abaixo da média da Europa e do leste da Ásia no acesso à internet, o Brasil já deixou há muito para trás a África e o Oriente Médio, por exemplo, e mesmo as Américas, se excluídos o Canadá e os Estados Unidos. Já em números absolutos, é disparado um dos maiores usuários do mundo, um pouco devido ao tamanho de sua população – hoje de 202 milhões de habitantes, a quinta maior do planeta. Ainda segundo a Pnad, em 2013 havia internet em 48% dos 65,1 milhões de domicílios, isto é, em mais de 30 milhões deles.

Assim, usando-se o clássico critério da Organização das Nações Unidas (ONU), que calcula uma média de 4 a 5 habitantes por moradia, o número da internet no Brasil totalizaria, no mínimo, 120 milhões de usuários domésticos, em uma estimativa grosseira, considerando que os bebês e os refratários ao computador deveriam ser excluídos dessa conta. De qualquer maneira, é praticamente o triplo da população da Argentina e o dobro do número de habitantes do Reino Unido e da França.

A expansão não tem se limitado às pessoas físicas, claro. Hoje, é quase impossível encontrar alguma empresa sem um domínio na internet. E na esteira de pioneiros como Aleksandar Mandic e Gustavo Viberti, que nos anos 1990 desenvolveram sites que entraram para a história da internet brasileira, com o Mandic Magic e o site de buscas Cadê?, pequenas companhias de softwares desenvolvem aplicativos que chamam a atenção em todo o mundo e são largamente exportados. Blogueiros principalmente da área de moda (e acessórios) hoje conseguem viver dessa atividade – antes vista como “alternativa” – sem grandes percalços.

Crescimento fulminante

Milhares de empresas também passaram a vender na modalidade online. Em torno de 27% das pequenas e microempresas brasileiras mantêm hoje lojas virtuais, segundo um estudo do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), diante de 14% em 2008 – e novas ferramentas são lançadas quase que a cada semana para o agronegócio, a indústria, as finanças e a saúde. E também para a educação, neste caso, principalmente, para a modalidade de ensino a distância (EaD) que, graças à internet, já responde por cerca de 25% das matrículas no curso superior do país, com a expectativa de alcançar entre 40% e 45% nos próximos anos.

A cultura em seu sentido mais estrito também tem se beneficiado. A Editora Unesp, ligada à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, por exemplo, vem publicando em seu site uma média de 90 a 100 livros digitais por ano, praticamente todos eles trabalhos de professores e pesquisadores dos vários campi dessa instituição de ensino no interior de São Paulo, nas mais diferentes áreas, da engenharia à música, da literatura à biologia e ciências sociais. “Antes, o acesso a esse material era absolutamente restrito, pois raramente eram publicados em livro impresso. Existia o receio da falta de demanda”, diz o presidente da editora, Jézio Hernani Gutierre. “Hoje, os trabalhos podem ser lidos pelos interessados em suas versões digitais. A internet está permitindo a democratização da mais fina produção acadêmica.”

Nem os transportes escaparam do upgrade proporcionado pela internet. O baixíssimo intervalo entre os trens (headway) do metrô de São Paulo, atualmente de 99 segundos – o terceiro menor do mundo –, seria impraticável, por exemplo, sem o computador e os sofisticados aplicativos de controle de tráfego. Os serviços de táxi também se desenvolveram muito com a disseminação de dispositivos embarcados no telefone celular, que localizam os condutores cadastrados mais próximos do local onde o usuário se encontra. Esse serviço, ainda um pouco confuso por falta de uma melhor regulamentação, é, em geral, gratuito.

“É impossível não reconhecer os avanços que a rede mundial de computadores trouxe para o país”, ressalta Dane Avanzi, vice-presidente da Associação das Empresas de Radiocomunicação do Brasil (Aerbras). “A internet mudou a maneira das pessoas de se relacionar, simplificou o trabalho das corporações e governos, extinguiu profissões e fez muitas outras surgirem. Tudo isso, em um exíguo espaço de duas décadas.”

A internet também já adquiriu significativo peso econômico. Somente o comércio eletrônico, por exemplo, registrou em 2014 um avanço de 24% na comparação com 2013, com a receita chegando a R$ 35,8 bilhões como resultado de 103,4 milhões de pedidos – quantidade 17% maior que o ano anterior. Ao todo, o Brasil soma hoje 61,6 milhões de e-consumidores únicos, aqueles que já fizeram pelo menos uma compra online. Até o fim de 2015, prevê a consultoria E-bit, o e-commerce atingirá um faturamento de R$ 43 bilhões, volume 20% maior do que em 2014.

Mas a expansão econômica da web no Brasil foi bem mais além. De acordo com um levantamento do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), divulgado em São Paulo no último mês de maio, entre 2012 e 2014 as empresas “não comerciais”, atuantes no segmento da internet, experimentaram um aumento ainda maior no faturamento, da ordem de 50,1%, pulando de R$ 96,4 bilhões para R$ 144,7 bilhões. O montante equivale a 1,74% do faturamento de todas as empresas brasileiras. “É difícil encontrar em dois anos um aumento tão alto”, destaca Gilberto Luiz do Amaral, presidente do conselho superior e coordenador de estudos do IBPT, segundo quem esse faturamento é maior do que o de 79% dos outros setores da economia. Esse nicho da internet tornou-se, por tabela, uma grande fonte de receitas para o governo – ocupa hoje a 14ª colocação no ranking de recolhimento de tributos federais. De cada R$ 100 da arrecadação no âmbito da economia, R$ 1,60 vem das empresas da área – ou 1,6% do total. Em 2005, a porcentagem era de 0,43%.

Um “brinquedão”

Considere-se que no levantamento do IBPT foram incluídas apenas as empresas do segmento de representação da Associação Brasileira de Internet (Abranet), participantes das divisões 61, 62 e 63 da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE): informação, telecomunicações e atividades de suporte para os setores de transporte, logística e turismo. Ficaram de fora, portanto, além do comércio eletrônico, áreas que são, igualmente, importantes usuárias da internet, como o agronegócio, o comércio eletrônico tradicional, a indústria e a prestação de serviços em geral, cujo faturamento e tributos originados indiretamente da web não são medidos separados de suas atividades fins. Ou seja, a internet deve estar movimentando tamanho montante de dinheiro no conjunto da economia do país que não seria inexato classificá-la hoje como um negócio milionário.

O melhor de tudo é que o segmento também já um grande usuário de mão de obra – que não se limita mais às tradicionais funções de digitador, analista de sistemas, webdesigner e assistente técnico. Entre 2012 e 2014, foram criados nas empresas consideradas de internet pelos critérios da CNAE, mais de 51 mil postos de trabalho, com um salário médio anual de R$ 40,3 mil. O próprio número dessas empresas vem crescendo substancialmente. O aumento entre 2012 e 2014 foi de 27,56%. A maioria esmagadora dos negócios – mais de 95% – é de pequeno e médio porte.

O mais fascinante é que a evolução da internet aqui foi acontecendo com a incorporação, mais ou menos simultânea, dos muitos e rapidíssimos avanços desta tecnologia, que surgiu nos Estados Unidos para uso militar e, posteriormente, acadêmico, entre o final dos anos 1960 e o começo dos anos 1970 – apesar de o Brasil ser, reconhecidamente, um anão em pesquisa e inovação tecnológicas. Os computadores “tubões” dos anos 1990, com conexão discada, lenta, instável e com uma capacidade de movimentação e armazenamento de dados similar à de uma cabeça de alfinete, logo dariam lugar a micros menores, mais leves, bem desenhados e muito mais potentes e velozes.

A melhoria do sistema de telecomunicações nacional disseminou a imprescindível banda larga – embora a velocidade média de conexão dos brasileiros seja ainda de 3,4 megabits por segundo, deixando-a em um pálido 89o lugar no ranking mundial desse quesito e em 8o, na América Latina, atrás de Uruguai, Chile, México, Argentina, Colômbia, Peru e Equador.

De qualquer forma, não houve um avanço sequer que o Brasil tenha perdido. Os primeiros notebooks – microcomputadores portáteis – foram lançados aqui meses depois dos Estados Unidos. Mais recentemente, a web brasileira também invadiu o celular, transformando-o de mero telefone móvel em smartphone, no qual fazer ou receber chamadas é só uma entre várias funções.

Aliás, a adoção dessa nova tecnologia pode ser considerada um verdadeiro fenômeno de massa no Brasil. Mais da metade das conexões são hoje realizadas por smartphones ou tablets. Na região norte do país, onde a telefonia fixa e a banda larga ainda ficam um pouco a dever no aspecto técnico, o uso exclusivo desses dois equipamentos para o acesso à web chega a impressionar: no Amapá, o estado campeão, 43% são feitos a partir da telefonia móvel; no vizinho Pará, 41,2%; no Amazonas, 39,6% e, em Roraima, 32%. “Gosto de baixar músicas, passar mensagens para os amigos, ler as notícias, mexer com fotografias, enfim, o smartphone é uma internet ambulante, um brinquedão”, afirma o músico paulistano Moacyr Oliveira, vocalista da banda de rock underground Diskerda. Ele também utiliza bastante o seu computador portátil para acessar as redes sociais, principalmente o Facebook, onde posta suas músicas, clássicos do rock e contundentes fotos e mensagens sobre o meio ambiente e a questão indígena.

O Facebook alcançou no Brasil uma popularidade jamais sonhada antes por algum criador de rede social: o número de usuários mensais já passou de 90 milhões, quantidade só inferior à dos Estados Unidos. Mais do que isso, muitos passam horas a fio utilizando o serviço (e os seus aplicativos WhatsApp e Instagram) de um modo que, segundo especialistas, talvez não seja o mais saudável. O professor de ciências econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Fábio Roberto Ferreira Borges, por exemplo, escreveu a várias mãos um incisivo artigo onde denuncia o Facebook como “um mero espaço para a exibição de comportamentos narcisistas de autopromoção, onde o indivíduo engendra uma grande narrativa do eu”, e no qual as opiniões emitidas sobre política, economia, sociedade e outros assuntos de cunho geral são muitas vezes arbitrárias e despidas de reflexão.

Mal empregada

Borges e seus colegas estão bem acompanhados nessa avaliação. O respeitadíssimo escritor e pensador italiano Umberto Eco disse recentemente: “Num mundo com mais de 7 bilhões de pessoas, você não concordaria que há muitos imbecis? Não estou falando ofensivamente quanto ao caráter das pessoas. O sujeito pode ser um excelente funcionário ou pai de família, mas ser um completo imbecil em diversos assuntos. Com a internet e as redes sociais, o imbecil passa a opinar a respeito de temas que não entende. Mas é claro que a internet tem seu valor”.

Alguns críticos mais generosos atribuem esse comportamento não lá muito dignificante antes à falta de “maturidade digital” de parte dos internautas, principalmente em países como o Brasil, cuja população se desabituou a discussões em praça pública depois de amargar longos 21 anos de ditadura (1964/1985) e onde o nível cultural médio, infelizmente, também não é dos melhores. Para eles, no fundo, muitos brasileiros não saberiam mesmo como lidar com a internet – não compreenderiam bem essa mídia.

Na verdade, desse ponto de vista, não seria só nas redes sociais que a internet é mal usada no país – e muitas vezes até para objetivos extravagantes, como buscas amorosas ou discussões de relacionamento –, mas em vários outros nichos, onde os sintomas dessa possível falta de maturidade podem ser percebidos com facilidade. Desta vez, não exatamente no excesso de voluntarismo, mas no seu oposto, a falta de ousadia para aproveitar a miríade de possibilidades oferecidas pela internet.

Isso acontece especialmente no universo das pequenas e microempresas (as grandes e médias já são geralmente bem informatizadas, com muitas fábricas contando, inclusive, com ferramentas de automação industrial como a robótica). A despeito da informação de que uma entre quatro pequenas empresas dispõe de lojas virtuais em seus sites, a utilização não vai muito além disso (mesmo assim, com intensidade bastante variável) e da comunicação direta com parceiros, fornecedores e clientes.

“É rara a pequena empresa que utiliza softwares de gestão empresarial para controlar estoques, contas a pagar etc.”, diz Jairo Lobo Migues, consultor do Sebrae de São Paulo. “Esses processos continuam sendo basicamente manuais. Um desperdício, com tantos programas baratos e eficientes no mercado.” Migues atribui essa subutilização a uma questão de mentalidade: sempre acuado por dificuldades financeiras, o pequeno empresário brasileiro costuma ser muito imediatista e evita investir em equipamentos cujo retorno econômico não seja de curto prazo. Essa distorção se repete em escala ainda maior no agronegócio. Segundo Silvio Roberto Medeiros Evangelista, chefe de pesquisa e desenvolvimento da Embrapa Informática Agropecuária, em 2012 a internet estava presente em apenas 10% dos domicílios rurais (incluindo aí tanto as propriedades produtivas propriamente ditas como os sítios e chácaras) e o computador, em 16%.

O uso da internet no controle da produção e da administração estava concentrado, compreensivelmente, nas propriedades maiores e mais mecanizadas, cujos gestores possuíam maior nível de escolaridade. “Os grandes proprietários sabem que ela diminui custos, aumenta a competitividade, facilita o acesso às informações e às novas tecnologias”, afirma Evangelista. “Já os pequenos, quando estão cientes dessas vantagens, muitas vezes não têm recursos para adquirir computadores e softwares nem a capacitação necessária para sua utilização.”

Problemas à parte, o fato é que a internet encontrou no Brasil terreno fértil para um desenvolvimento sustentável. A contribuição dessa tecnologia para os negócios, para a ampliação do debate democrático (apesar de tudo) e para a disseminação do conhecimento está aí para todos verem. O Brasil, sem dúvida, está, pouco a pouco, ficando mais inteligente e conectado ao mundo com a web. E, com o tempo, também ficará mais rico graças a ela quando souber aproveitar todo o potencial que essa extraordinária inovação oferece para quem se dispõe a decifrá-la.
Revista Problemas Brasileiros

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