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terça-feira, 20 de setembro de 2016

Então quer dizer que quando o imposto sobe, quem ganha são os criminosos?



Exatamente. Quando o imposto aumenta, o cigarro produzido no Brasil fica mais caro para o consumidor final. Com o cigarro nacional mais caro, o crime organizado leva vantagem na comercialização e distribuição do cigarro contrabandeado. Quanto mais o imposto cresce, mais o crime organizado se beneficia.
 http://www.fncp.org.br/impostocrescecrimeagradece/

O aumento do imposto do cigarro contribui para o aumento do contrabando?



Desde 2011, ano em que entrou em vigor o atual modelo tributário do setor, e que previa aumentos sucessivos de impostos, até 2015, o volume do mercado legal de cigarros no país teve uma redução de 8% ao ano. Já o volume do mercado ilegal cresceu 9% ao ano no mesmo período.
 http://www.fncp.org.br/impostocrescecrimeagradece/

sábado, 26 de dezembro de 2015

“Brasileiro cultua a aparência”


Ivo Pitanguy / Foto: Carlos Juliano Barros

CARLOS JULIANO BARROS

Poucas pessoas têm tantas histórias para contar quanto Ivo Pitanguy. A primeira digna de nota está relacionada com o seu nascimento. Oficialmente, Pitanguy veio ao mundo em 5 de julho de 1926, em Belo Horizonte, mas a certidão oficial feita por seu pai em cartório registra o ano de 1923. Confusões à parte, o médico cuja trajetória profissional se confunde com o advento da cirurgia plástica no Brasil prefere mesmo dizer que já está caminhando para o aniversário de número 92 talvez para enfatizar a vitalidade que esbanja.
Pelas hábeis mãos de Pitanguy, considerado um dos papas da cirurgia plástica mundial, passaram celebridades nacionais e internacionais, como a atriz italiana Sophia Loren e o piloto austríaco Niki Lauda. Todavia, a lista de pacientes e amigos ilustres é um assunto que não parece deslumbrar o pacato e observador médico mineiro radicado há muito tempo no Rio de Janeiro, onde criou os primeiros cursos de especialização em cirurgia plástica do país. “É uma satisfação enorme poder transmitir o bom conhecimento”, afirma. Pitanguy também foi o responsável por levar serviços de atendimento médico em hospitais públicos para aqueles que não podem pagar por uma cirurgia plástica.
Nesta entrevista, concedida em sua luxuosa clínica sediada no bairro de Botafogo, na capital carioca, Pitanguy também se deixou levar pela filosofia para explicar sua impressionante longevidade e a invejável capacidade de conciliar o elevado número de compromissos que recheiam sua agenda: “o tempo não se mede pelo espaço de horas, mas pela intensidade que se dá a elas”, define.

Problemas Brasileiros – Em 2014, pela primeira vez na história, o Brasil superou os Estados Unidos em número de cirurgias plásticas, tornando-se o campeão mundial nessa prática. Foram quase 1,5 milhão de operações, ou 13% do total global. O que explica esse fenômeno?
Ivo Pitanguy – Não existe uma explicação única. Em primeiro lugar, creio que a população brasileira é muito consciente de sua aparência. Ela se expõe muito ao sol, não se esconde em roupas, enfim, é muito consciente de seu corpo. Então, a cirurgia plástica foi aceita como mais uma possibilidade de as pessoas se sentirem bem com a própria imagem. Mas essa não é a razão principal. Na minha geração, ensinava-se muito pouco de cirurgia estética. Então, junto com alguns colegas, criamos no hospital da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro uma estrutura em que se ensinava cirurgia reparadora e estética, reafirmando a importância de levar em consideração os desejos das pessoas. Isso teve o mérito de trazer para as classes menos favorecidas também a cirurgia estética, além da cirurgia meramente reparadora. Nós formamos muitos médicos com essa capacitação. Outro dado importante é que surgiram outras escolas que passaram a trilhar o mesmo caminho da nossa. Então, há a vontade de se transmitir o conhecimento. Isso fez com que o Brasil, hoje, tenha cirurgiões plásticos espalhados por todo o seu território, um cenário que contrasta com o de outros países. Se você for a Aracaju [SE], a São José do Rio Preto [SP] ou a Juiz de Fora [MG] vai encontrar um cirurgião bem treinado. A cirurgia plástica no Brasil adquiriu qualidade e respeitabilidade.

PB – Qual é a diferença entre a cirurgia plástica estética e a plástica reparadora?
Pitanguy – Essa diferença não existe. A cirurgia plástica é uma só. Opera-se um indivíduo para elevar seu bem-estar e também para melhorar a relação com a sua imagem. Por exemplo: se alguém nasce com uma orelha para a frente, pode-se fazer uma cirurgia estética, por conta de uma deformidade congênita. Se, por acaso, nasce com lábio leporino, a cirurgia é puramente reparadora, mas depois passa a ser estética para torná-lo igual ao lábio normal. É necessário dar relevância à cirurgia plástica como um todo e isso se reflete no ensino. É importante entender a profundidade que existe em tratar um traumatismo esteticamente.

PB – Lipoaspiração, implante de silicone nas mamas e operação de elevação dos seios são os procedimentos mais comuns, segundo levantamento da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética. As mulheres ainda recorrem mais a cirurgias plásticas do que os homens?
Pitanguy – É preciso falar de cirurgia plástica de uma maneira mais ampla, e não nesse ou naquele tipo de cirurgia, porque, como já afirmei, cirurgia estética e cirurgia reparadora se confundem muito. Um dos procedimentos mais comuns entre as mulheres é a cirurgia abdominal para aquelas que têm muitos filhos, aglutinando aspectos funcional e estético ao mesmo tempo. A lipoaspiração, por exemplo, é feita aqui em condições iguais às de outros países e tem indicações limitadas. Ela é bem indicada para as lipodistrofias e gorduras localizadas. Mas não se emagrece ninguém com lipoaspiração.

PB – É possível traçar um perfil dos brasileiros que buscam uma cirurgia plástica? Esse perfil vem mudando ao longo do tempo?
Pitanguy – Existe hoje em dia uma certa mudança, sobretudo devido à facilidade da exposição da imagem. Isso fez com que a população se nivelasse quanto à procura de uma imagem ideal. O marketing exagerado fez surgir figuras ideais que não podem ser reproduzidas. Outro ponto: as pessoas começaram a ficar mais obesas, criando um campo muito grande para as cirurgias que tratam da obesidade. Cada vez mais existe a necessidade de que o cirurgião plástico seja bem formado para orientar quem deseja fazer algum tipo de procedimento. Nesse aspecto, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica é bastante atuante e se ocupa da qualidade e fiscalização dos cursos de formação de cirurgiões. Somos um dos poucos países em que existe hegemonia de uma entidade. Em outros lugares, há várias delas brigando.

PB – Como o senhor avalia as críticas de que existe uma obsessão por cirurgias plásticas no Brasil, alimentando a construção de um padrão estético preconceituoso que não corresponde ao da maioria dos brasileiros?
Pitanguy – A formação do cirurgião é que vai fazê-lo dizer ao paciente se ele precisa mesmo ser operado ou se deve buscar outro tipo de ajuda. O importante é que o profissional – antes de ser cirurgião – seja médico, para saber aconselhar o paciente. A cirurgia plástica não deve ser banalizada. Ela deve ser vista como um ramo da cirurgia geral e feita em indicações apropriadas.

PB – Recentemente, a conhecida modelo brasileira Andressa Urach sofreu uma grave infecção em decorrência da aplicação de hidrogel. Casos semelhantes já tiveram grande repercussão, como o da modelo Claudia Liz e do cantor Marcus Menna, que entraram em coma durante procedimentos de lipoaspiração. O que explica um caso como esse: falha do médico, falta de assepsia da clínica ou não confiabilidade do tratamento?
Pitanguy – Sem entrar nos detalhes de nenhum desses casos, uma das questões mais importantes no campo da cirurgia plástica é não utilizar produtos que não tenham uma longa comprovação clínica e laboratorial. Há produtos que não devem ser utilizados ou são utilizados erroneamente, muitas vezes até por pessoas que sequer têm formação em medicina. Além disso, alguns itens não deveriam ter sido liberados. Aliás, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária [Anvisa] já proibiu um tipo de hidrogel. É muito difícil injetar alguma substância que o organismo tolere. Então, é importante saber o que injetar. Nós vemos tanto aqui na clínica privada quanto na Santa Casa muitos casos de pessoas que vão à academia para injetar óleo mineral para ganhar músculos, uma barbaridade. É essencial que o paciente saiba que não pode aplicar qualquer coisa no seu corpo e que deve procurar se informar bem, com orientação de um médico competente.

PB – O senhor é a maior referência em cirurgia plástica no Brasil e uma das maiores do mundo. Além de criar técnicas inovadoras, também organizou os primeiros cursos dessa especialidade no país. Em que papel o senhor se sente mais à vontade: no de cirurgião ou no de professor?
Pitanguy – Na vida, quando se tem a oportunidade de transmitir o conhecimento, é o mais importante que se pode fazer. Lutei muito para aprender sobre cirurgia plástica porque, simplesmente, na minha época não se ensinava sobre ela. Então, comecei a fazer isso, e nosso curso vem há 53 anos formando médicos cirurgiões. Tempos atrás, fizemos uma foto da primeira turma formada junto com o grupo diplomado de número 50. É uma satisfação enorme poder transmitir o bom conhecimento. Ao mesmo tempo, professor é aquele que aprende, não só o que ensina. Aprende com o convívio. Esse convívio faz com que a curiosidade permaneça viva. É um conjunto da alegria de viver e de ensinar.

PB – Interessados de fora do Brasil procuram o senhor para aprender sobre cirurgia plástica?
Pitanguy – Como fui pioneiro em diversas técnicas, durante toda a minha vida, recebi gente do mundo inteiro. Mas também é muito importante ter por perto as pessoas simples, aprender que entre o mendigo e o rei não há diferença. Você aprende lidando com todo mundo.

PB – Muitas pessoas que sofrem acidentes necessitam de cirurgia plástica para recuperar a configuração original do corpo. Como o senhor, que trabalhou na Santa Casa e no hospital municipal Souza Aguiar, ambos no Rio de Janeiro, avalia as políticas públicas direcionadas a pessoas que não podem pagar por um cirurgião plástico particular?
Pitanguy – No aspecto técnico da cirurgia plástica, o Brasil até que está relativamente bem. Estamos mal é na orientação e na qualidade dos serviços públicos. Se pensarmos em serviços que dependem de verbas, como o tratamento de grandes queimaduras, aí é que não estamos bem mesmo. Não somos comparáveis a outros países, a outros grandes centros. São serviços que, além do conhecimento médico, necessitam de manutenção – e isso custa dinheiro. Os enfermeiros, os medicamentos, enfim, todo o tratamento de um grande traumatizado custa muito caro. Nesse sentido, somos inferiores ao que de melhor se faz no exterior devido à nossa situação social. Mas a qualidade da medicina e da cirurgia plástica praticadas aqui são excelentes.

PB – O senhor deixou de fazer cirurgias há quase dois anos. Sente falta?
Pitanguy – Até os 90 anos, eu ainda operava. Parei sentindo que havia cumprido meu tempo. Mas ainda tenho um imenso prazer em dar consultas a pacientes, grupo selecionado de pessoas que gostam de ter a minha orientação, só que agora em número mais reduzido do que no passado. Também conduzo cursos de formação, um de pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro [PUC-RJ], que tem mais de 50 anos, e outro no Instituto de Pós-Graduação Médica Carlos Chagas. Tudo isso criado no âmbito do Instituto Ivo Pitanguy, que engloba a Santa Casa e a parte do ensino. Também continuo atuando na área científica, junto com um grupo de pessoas associadas da maior qualidade.

PB – O trabalho do cirurgião tem um quê do ofício do artesão?
Pitanguy – Em todo trabalho manual existe muito do artesão. O artesão puro não é valorizado. Mas não há uma grande pintura sem o artesanato. Não há uma grande escultura sem o artesanato. Michelangelo, por exemplo, foi um grande artesão italiano. Na medicina, você tem que – quando possível – conceber o útil. Mas depois você entrega ao organismo, que vai ter reações próprias. É uma profissão de intenções, não de fins absolutos, porque se assim fosse seríamos deuses – e não somos! A medicina é uma arte aplicada. Nas classificações antigas, desde os tempos de Aristóteles, a medicina não é tida como uma ciência dogmática, mas especulativa. Você está procurando encontrar a solução. Você não tem a solução. O médico precisa ter a vontade de acertar e essa vontade é conduzida pela formação, pelo estudo, pela especialidade. A medicina não pode ser inventada e reinventada, ela tem que ser feita, estudada e sedimentada ao longo de muitos anos.

PB – O senhor foi amigo de escritores consagrados, como Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos, seus conterrâneos de Minas Gerais. Também manteve contato com personalidades como o filósofo Jean-Paul Sartre, o pintor Salvador Dalí e o cineasta Roman Polanski. O senhor é um grande amante das artes?
Pitanguy – Sou um grande amante da vida. Amo primeiro a natureza. Sempre gostei muito de bicho. Quando era garotinho, gostava tanto de bicho quanto de gente. E, desde jovem, sempre fui esportista. Gosto muito da disciplina que o esporte dá – e que trago para a vida. E gosto muito do convívio humano. Gosto da vida em toda a sua amplitude. Mas, por conta da medicina e do trabalho, evidentemente, sobra pouco tempo. Só que o tempo não se mede pelo espaço de horas, mas pela intensidade que se dá a elas. Por exemplo: se eu ia dar uma conferência em Kuala Lumpur, aproveitava para conhecer um pouco da Malásia. Aprendi muito sobre a vida nessas conferências que fiz pelo mundo, sendo levado por motivos puramente profissionais. Devo muito às obrigações profissionais e soube tirar proveito delas. E, evidentemente, gosto muito da vida familiar, de minha mulher, de meus filhos, sinto que a família é um núcleo fundamental. Tive a sorte de nascer numa família unida: meu pai era médico e minha mãe era uma grande senhora, uma grande humanista. Compreendo a divergência entre as pessoas, entendo que os filhos não têm de ser iguais aos pais. Mas é importante que exista um amor comum.

PB – O senhor recentemente lançou um livro com suas memórias intitulado Viver Vale a Pena. Como é sua relação com a literatura?
Pitanguy – Gosto muito de ler, e escrevo um pouco. Escrevo, sobretudo, trabalhos científicos, e são mais de 900 artigos e 40 livros. Mas Viver Vale a Pena é uma obra sem pretensões, que conta um pouco disso sobre o que estamos conversando: a luta por um ideal e a luta para transmiti-lo.

PB – O senhor se arrisca a escrever poemas, narrativas ficcionais?
Pitanguy – Não. Sou um grande leitor de poesia e gosto muito de literatura. Leio muito a grande literatura mundial. Adoro todos os clássicos. Graças a Deus, formei uma cultura muito sólida, começando por Homero, Dante, Cervantes, Shakespeare. Tenho toda a minha formação feita por prazer, que continuo a cultivar, porque gosto de cultuar o espírito. 

PB – E a sua relação com a música?
Pitanguy – Ouço o tempo todo música clássica. Gosto muito de Mozart, de Bach, mas quando estou calmo também gosto de bossa nova. Da nossa música, prefiro o samba romântico, mais antigo, mais clássico. Não gosto de música eletrônica e adoro jazz, Billie Holiday, por exemplo. Tudo o que faço, se possível, faço com música. A música é penetrante, conferindo a você uma consistência maior. 

PB – Chico Xavier foi caseiro de sua família. Madame Satã foi seu guia em mergulhos e caçadas submarinas. Em uma entrevista, o senhor afirmou que “sempre teve curiosidade pelas pessoas mais simples”. O que o senhor quis dizer com isso exatamente?
Pitanguy – Eu gosto muito de pessoas. E acho que a cultura popular é uma forma riquíssima de cultura. O Chico Xavier já é uma cultura do além... [risos]. 

PB – O senhor se interessa por política?
Pitanguy – Sim, tenho grande interesse pela política. Como todo mineiro, sou alguém que observa muito. Porém, jamais seria um político porque, devido ao meu temperamento, não sou de fazer grandes concessões para aquilo em que não acredito. Sou muito franco, muito aberto, e isso forma um mau político.

PB – Existe alguma figura política que o senhor admira? Em quem votou nas últimas eleições?
Pitanguy – A figura política que mais admirei e com quem convivi muito foi Juscelino Kubitschek. Tinha por ele uma grande admiração, pelo entusiasmo que conseguia transmitir às pessoas. Poucas pessoas têm uma luz interna e são capazes de transmiti-la a outras. Nas eleições do ano passado, Aécio Neves fez uma campanha bonita. Porém, acho que a política atualmente no Brasil está vivendo um momento de muita fraqueza. Na verdade, estamos muito pobres em política. E essa pobreza está refletida na expressão de desgosto de parcela da população pela política, esperando que alguma coisa nova surja.

PB – Além de se dedicar ao trabalho, o senhor sempre teve uma vida muito ativa: pratica mergulho e é faixa preta de caratê, por exemplo. Como equilibrar tantos pratos ao mesmo tempo?
Pitanguy – Se você tiver curiosidade por muitas coisas, vai se enriquecer mais. Eu tive essa sorte. E continuo tendo. Sei, por exemplo, o que aconteceu na última luta de MMA [Mixed Martial Arts]; estou a par da classificação do futebol; acompanho a NBA [a liga de basquete norte-americana], e estou inteirado sobre os tempos da natação. Se você der a cada momento uma intensidade maior, sua vida será muito mais rica em anos e os momentos mais longos.
Revista Problemas Brasileiros

O distúrbio chamado dislexia


CEZAR MARTINS

Silêncio é uma palavra com alguns mistérios para a pequena Ana Beatriz Regonha. Tímida, a caçula de três irmãos conhece o significado do substantivo e o emprega com perfeição em qualquer história que vá contar, mas escrevê-lo na lousa seguindo o ditado da professora de português é uma tarefa complicadíssima para essa garota de 11 anos que cursa a quinta série do ensino fundamental. Frequentemente, ela é vitimada pelos ardis do idioma e, com a caneta na mão, sentencia: “Cilessio”. O problema da estudante, cujo nível intelectual é igual ao de seus colegas, assim como a alfabetização (concluída no prazo habitual), está ligado à dislexia, um transtorno de origem neurobiológica que dificulta a decodificação das letras, dos fonemas e a fluência na leitura e na escrita. Assim como ela, de acordo com dados da Associação Internacional de Dislexia (IDA, na sigla em inglês), cerca de 10% da população mundial tem esse distúrbio e boa parte ainda desconhece a razão de tantas dificuldades para ler e compreender um texto.

Esse, no entanto, não é propriamente o caso de Ana Beatriz, assistida desde os 6 anos por uma das muitas associações que dão apoio a jovens e adultos disléxicos no Brasil. Todas as terças-feiras, pela manhã, acompanhada da mãe, a menina participa de sessões de terapia em que, ao lado de outras crianças da mesma idade, pratica leitura, participa de jogos educativos e é estimulada por uma educadora a treinar a escrita para, lentamente, ir descobrindo meios de evitar seus erros mais comuns. A dislexia e a pressão para que tenha o mesmo aproveitamento dos outros alunos já não a assustam tanto. Ela diz que gosta mais das aulas de história e matemática, mas ainda enfrenta a resistência de alguns educadores reticentes quanto à necessidade de adaptar seus métodos de ensino e avaliação. “No começo do ano, tive de ir à escola para conversar com uma das professoras a fim de colocá-la a par da situação. Ela achava que o aproveitamento de minha filha em sua matéria, que podia ser bem melhor, decorria de falta de dedicação”, relata a mãe de Ana Beatriz. “Hoje eu compreendo melhor suas dificuldades e sofro menos”, conclui.

Embora a dislexia esteja catalogada na Classificação Internacional de Doenças, publicada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), os especialistas preferem chamá-la de distúrbio de aprendizagem. A perturbação é causada pela inabilidade do lado esquerdo do cérebro em reconhecer automaticamente letras e sílabas escritas, relacioná-las ao som produzido pela fala e transformar esse conjunto em um repertório de palavras que serão úteis em leituras futuras e na produção textual. “É um transtorno de base neurológica, uma disfunção específica da área da linguagem”, explica a psicopedagoga Tânia Freitas, diretora da Associação Brasileira de Dislexia (ABD). Segundo ela, o indivíduo geralmente tem ótimas noções de espacialidade e de proporcionalidade e se expressa bem verbalmente, mas talvez tenha um vocabulário reduzido. “É aquela pessoa que dá voltas e voltas para contar uma história, algumas vezes não entende piadas, confunde as letras quando escreve e lê sem fluência”, diz.

Evidências científicas indicam que o distúrbio tem origem genética, é hereditário e não há cura completa para ele nem remédios capazes de colocar um fim no problema. A única saída é o acompanhamento constante por fonoaudiólogos, psicólogos e neurologistas especializados, por um longo período, até que o aluno aprenda a driblar suas dificuldades. Além disso, é extremamente recomendável que professores e pais participem da alfabetização, oferecendo instrumentos visuais e auditivos mais eficientes para os disléxicos. “O mundo é letrado e toda criança normal entra na escola com vontade de aprender a ler e a escrever. Ninguém quer ficar para trás, ser alvo de gozações, e esse problema pode ter consequências graves no futuro”, observa Tânia. De acordo com a psicopedagoga, que é especialista no tratamento de adolescentes e adultos, dependendo da extensão do trauma a que são submetidos por causa do distúrbio, há casos de disléxicos que se tornam dependentes químicos.

Projeto de lei

Em alguns países, como a Inglaterra e os Estados Unidos, o assunto é debatido amplamente e há políticas públicas que pregam maior atenção aos alunos com esse tipo de dificuldade; no Brasil, todavia, a dislexia ainda costuma passar longe dos despachos das autoridades estaduais e municipais e também dos ministérios que deveriam se preocupar com o tema. Enquanto isso, organizações não governamentais, como a ABD e o Instituto ABCD – que presta o atendimento gratuito a Ana Beatriz e a outras crianças – tentam contribuir com o diagnóstico e a capacitação de professores para a identificação, nas salas de aula, de alunos com sintomas do distúrbio. “A ideia não é levar o educador a fazer o diagnóstico, mas torná-lo informado e esclarecido sobre a questão”, diz Mônica Andrade Weinstein, diretora presidente do Instituto ABCD.

O fato de existirem outras entidades assistenciais em Brasília, Curitiba, Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul mostra que, a despeito da distância oficial, o tema faz parte das preocupações da sociedade civil, exigindo, portanto, maior atenção do Estado. Segundo Mônica, o problema diz respeito às secretarias de saúde, da educação e do desenvolvimento social. “A articulação de programas que envolvam essas três áreas é uma das maiores dificuldades que enfrentamos, devido a questões burocráticas e políticas, quando procuramos tratar do assunto com os governos municipais. Contudo, quando a integração ocorre, o resultado é muito satisfatório”, explica.

Um projeto de lei de 2010, ainda em discussão na Câmara dos Deputados, defende a criação, pelo poder público, de programas de diagnóstico e tratamento da dislexia para estudantes da educação básica, por meio de equipes de profissionais das áreas médica, educacional e psicopedagógica – além de tornar obrigatório que as escolas assegurem aos alunos recursos didáticos mais adequados a sua aprendizagem. A proposta, contudo, encontra resistência em diversas instituições e no próprio governo federal, tendo gerado uma polêmica em torno até mesmo das evidências da existência da disfunção. Relatório da deputada federal Mara Gabrilli (PSDB), na Comissão de Educação e Cultura, favorável à aprovação da lei, cita o Conselho Federal de Psicologia (CFP) como um dos líderes do movimento que “nega a própria dislexia”. Segundo Marilene Proença, representante do CFP, a questão a ser observada é a baixa qualidade do sistema educacional brasileiro. “A escola não atingiu níveis minimamente apropriados no Brasil. A preocupação do Conselho Federal de Psicologia é que as dificuldades de alfabetização são resultado de falhas na formação dos professores, de grades curriculares mal preparadas e de outros problemas. Estamos atribuindo às crianças a culpa por não saberem ler e escrever, mas oferecemos uma escola muito abaixo do que elas precisam”, avalia.

Outro receio se relaciona ao uso abusivo de medicamentos, devido ao que os estudiosos chamam de comorbidades da dislexia. Geralmente, um disléxico costuma apresentar, ao mesmo tempo, outros tipos de distúrbios. Um dos mais comuns é o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade, conhecido pela sigla TDAH. Seus sintomas são a incapacidade de concentração por um longo período em determinada atividade, inquietude e impulsividade e, embora seja reconhecido pela OMS, há também estudiosos que tratam o assunto apenas como mito. De qualquer maneira, quando o TDAH é diagnosticado, uma das soluções é a prescrição de um estimulante do sistema nervoso central de largo consumo. O Brasil é o segundo país que mais utiliza a droga, que é de uso controlado, segundo pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, e a administração a crianças, na opinião de Marilene, deveria ser evitada por causa dos efeitos colaterais. “O aluno que costuma correr pela sala toma essa pílula e fica quieto. Mas o custo disso é altíssimo. Ela inibe, por exemplo, o apetite de crianças em fase de crescimento”, relata. Já os defensores do projeto de lei alegam que, como a medicação só pode ser indicada por neurologistas, sua utilização ainda estaria sob parâmetros seguros.

Para tentar sensibilizar os governantes e outros setores da sociedade para a importância do tratamento da dislexia, o Instituto ABCD lançou, em outubro de 2012, uma campanha batizada de “Eu Posso!”, cuja divulgação ganhou o apoio de diversos artistas que aceitaram tirar fotos com a camiseta criada pela entidade. É muito pouco para resolver a questão de vez, mas a fama do cantor e ex-ministro Gilberto Gil, da ex-jogadora de basquete Hortência e de outras celebridades contribuiu para colocar o tema em destaque nos principais veículos de comunicação, mesmo que por alguns dias. “Em outros países, o estigma da dislexia já foi vencido. No Brasil, infelizmente, o portador do distúrbio ainda tem receio de falar sobre ele em público”, lastima Mônica Weinstein.

Diagnóstico

Originada do grego, é bem possível que a palavra “dislexia” tenha sido utilizada pela primeira vez por um oftalmologista alemão, Rudolf Berlin, no final do século 19, quando estudava o caso de um jovem que tinha visão e nível intelectual normais, mas apresentava dificuldades de leitura e escrita. Já naquela época acreditava-se que a falha decorria de causas biológicas e era influenciada por fatores hereditários, mas pouco se sabia sobre as funções cerebrais responsáveis pela decodificação dos sinais escritos, conhecimento que se tornou maior e mais difundido apenas nas últimas décadas. Atualmente, imagens captadas por aparelhos de ressonância magnética indicam que as áreas ativadas no cérebro de um disléxico, quando colocado diante de um texto, são diferentes das de um indivíduo que não apresenta o transtorno.

Apesar de todos os avanços científicos e tecnológicos, o diagnóstico da dislexia não é simples e seu custo pode ser muito elevado para as famílias, em especial as de baixa renda. Ele é realizado clinicamente por uma equipe de profissionais de diferentes especialidades – psicopedagogos, fonoaudiólogos e neuropsicólogos – e pelo método de exclusão. Isso significa que uma criança com sintomas do distúrbio necessita passar por uma série de exames físicos para descartar qualquer outro tipo de moléstia capaz de afetar a alfabetização, além de ter seu histórico escolar e familiar esmiuçado para comprovar que tem recebido todos os estímulos fundamentais para o bom desempenho em sala de aula. Outra ressalva importante que os especialistas fazem é que nenhum aluno deve ser diagnosticado como disléxico até que tenha atingido a plena maturidade cerebral e emocional para ser alfabetizado, o que só costuma acontecer a partir dos 10 anos. Antes disso, é comum a ocorrência de trocas de letras e erros ortográficos. Mesmo assim, os professores devem estar atentos aos casos de aparecimento inesperado de dificuldades na aprendizagem – nessas situações as crianças são classificadas como “de risco” e já podem começar a receber acompanhamento adequado para evitar dores de cabeça futuras.

Na prática, medidas simples capazes de estimular o aprendizado por caminhos menos tradicionais, educadores mais bem informados e escolas que atuam com profissionais especializados mostram que a evolução escolar de alunos disléxicos pode ser tão satisfatória quanto a do restante da sala. “Trabalho, anualmente, com 600 alunos e é normal que de seis a oito deles sejam diagnosticados como disléxicos”, conta Fernanda Rissi, coordenadora de ensino fundamental do Colégio Dominante, escola particular de São Paulo. Ela diz que essas crianças passam por um sistema de avaliação diferente, ficam mais perto, na sala de aula, dos professores – que já estão mais conscientes sobre o problema – e têm a garantia de que as orientações dadas pelas psicopedagogas que fazem o acompanhamento serão consideradas.

“É importante trabalhar a confiança da criança com dislexia”, ressalta Fernanda. “Um de nossos primeiros alunos portadores do distúrbio terminou a faculdade de física, na Universidade de São Paulo (USP), e o pai nos mandou um e-mail para agradecer o apoio dado ao filho”, relata. O exemplo bem-sucedido, contudo, ainda é exceção entre os alunos brasileiros. O mais comum, segundo alerta Tânia Freitas, da ABD, é as crianças excluídas do processo educacional se tornarem jovens desinteressados pelas aulas, com baixa autoestima, podendo até mesmo, em casos extremos, abandonar os estudos. Na fase adulta, se tiverem a chance de descobrir as razões de suas dificuldades, sua trajetória pessoal e profissional já estará marcada por fracassos inexplicáveis e crises familiares severas, e terão um árduo caminho a percorrer na tentativa de reescrever, agora de forma certa, sua história.

Inventores e artistas

A despeito das dificuldades cotidianas para entender fonemas e ler fluentemente, os disléxicos possuem o hemisfério direito do cérebro bastante desenvolvido e costumam se adaptar bem a tarefas que envolvam criatividade. Talvez por isso exista uma lista extensa de atores, esportistas, músicos, pintores e gênios da ciência portadores do transtorno que, após superar as agruras da infância e da adolescência, conseguiram ser reconhecidos por suas virtudes na vida adulta. A lista é extensa, podendo ser citados Thomas Edison, inventor da lâmpada, Walt Disney, criador dos desenhos animados, e, na atualidade, estrelas de Hollywood, como Tom Cruise e Whoopi Goldberg, que costumam decorar os roteiros de filmes com a ajuda de gravadores.

Cruise acredita ter sido curado após aderir à cientologia (seita que mistura a psicoterapia com ensinamentos do hinduísmo, budismo e cristianismo), mas Whoopi, que ganhou um Oscar por sua atuação no filme Ghost e não se furta a abordar o transtorno com a imprensa, admite que teve problemas para esquecer as críticas de professores e colegas que não compreendiam seu baixo rendimento escolar. “Para um jovem, o efeito das palavras ‘estúpido’ e ‘burro’ é devastador”, diz.

Nascido na Alemanha e naturalizado suíço, o cientista Albert Einstein, ganhador do Prêmio Nobel em 1921 e considerado o maior responsável pela revolução nos conceitos modernos da física, começou a falar tardiamente e só teria sido alfabetizado aos 9 anos de idade, mas não há a certeza de que realmente sofresse do distúrbio. Sobre a escritora inglesa Agatha Christie, que morreu em 1976 e se destacou como autora de livros do gênero policial, paira a mesma dúvida. O fato de boa parte de suas histórias ter sido ditada a sua secretária faz os especialistas suporem que a “Rainha do Crime” tenha sido portadora do transtorno.

Já o escocês Jackie Stewart, tricampeão mundial de Fórmula 1, tomou ciência de que era disléxico quando um de seus filhos foi diagnosticado com a doença. Ele conta, em suas memórias, que ficava envergonhado quando a professora o convocava para fazer leitura em voz alta. “Olhava para a página e não enxergava nada além de uma massa de letras indecifráveis. Todos me tinham como um garoto pequeno e atrevido, com um brilho nos olhos, mas, naqueles momentos, minha fina camada de confiança era simplesmente arrancada.” Motivo de chacota na escola, o ex-corredor chegou a ser agredido por outros alunos quando tinha 14 anos. Adulto, interessou-se pela mecânica de automóveis, algo em que já se destacava e que o levaria para as pistas de corrida. Outro piloto disléxico, mas ainda em atividade, o inglês Justin Wilson tornou-se embaixador da Associação Internacional de Dislexia, com sede nos Estados Unidos.
Revista Problemas Brasileiros

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Esta guerra não admite tréguas



Combate às superbactérias pede ação do Estado e setores privados / Foto: Marcos Santos/USP Imagens

MILU LEITE

Algo de muito perigoso está acontecendo num mundo inalcançável a olho nu e que tem colocado em estado de atenção, cientistas e profissionais da saúde: bactérias e outros micro-organismos que estão se tornando mais resistentes aos antibióticos e se propagando fora dos hospitais. Em meados de 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu um alerta informando que a ameaça dos supermicróbios é real e extensiva a todo o planeta, afetando “a todos, em todas as regiões e independente da idade”. De acordo com a entidade, 500 mil casos de tuberculose foram causados por germes super-resistentes em 2012. As previsões vislumbram um panorama assustador, pois esse número poderá saltar para 2 milhões ao longo de mais três anos.

O conhecimento a respeito da resistência de determinadas bactérias a alguns tipos de antibióticos, no entanto, não é recente. Vem desde a década de 1930, e foi nessa época que o Staphylococcus aureus, responsável por causar infecções respiratórias e cutâneas, demonstrou resistência quando se confrontou com a medicação até então aplicada com sucesso para matá-lo, a penicilina. A poderosa droga, festejada desde a sua descoberta, em 1928, pelo farmacologista, biólogo e imunologista escocês Alexander Fleming, sofreu seu primeiro revés, despertando a apreensão da comunidade científica. Logo se descobriu que não só o Staphylococcus aureus como vários outros micro-organismos dispõem de um sistema que os leva a sofrer mutações, tornando-os resistentes a uma gama de medicamentos.

A lista atual é grande. Os cinco micro-organismos mais perigosos, do ponto de vista da propagação e da resistência na comunidade, são os agentes da diarreia, da malária e da tuberculose. Nos hospitais, o Staphylococcus aureus (resistente à meticilina) e vários tipos de bactérias Gram-negativas, incluindo as enterobactérias produtoras de lactamase de espectro estendido (ESBL), as produtoras de carbapenemases (KPC) e as cepas resistentes de Pseudomonas aeruginosa eAcinetobacter baumannii. Em poucas palavras, isto significa que doenças causadas por estes germes, antes tratadas facilmente – como as infecções do trato urinário e de pele, a pneumonia e a tuberculose –, estão voltando a matar quantidade cada vez maior de pessoas. E a principal razão para tanto reside no fato de que, enquanto o número de micróbios resistentes aumenta, a descoberta de novos antimicrobianos anda a passos comedidos. Em síntese: a ciência não tem conseguido criar com a mesma rapidez das mutações os medicamentos necessários para a cura das doenças que elas podem causar.

O mundo caminha para a era pós-antibióticos, e a falta de medidas públicas capazes de mudar o rumo das coisas trará consequências devastadoras, segundo a OMS. Os médicos, com algumas ressalvas, têm concordado com a previsão. “Se nada for feito, viveremos situações bastante dramáticas”, garante Nelson Ribeiro Filho, professor de infectologia da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC), em Santo André, e coordenador do Serviço de Controle de Infecção Hospitalar do Hospital Santa Helena e Maternidade Santa Helena. “Os governos têm papel central nesta discussão. Há um uso exagerado e desnecessário de antimicrobianos em todos os países”, ressalta. Ele relata que mais de 50% dos antibióticos prescritos não são corretos, seja pela indicação (caso das infecções virais) e pela escolha (caso em que a medicação não age sobre a infecção), como por erro na dose ou no tempo de tratamento. “Em pacientes internados em hospitais, 30% das prescrições também são inadequadas”, conclui. Até 2010 a situação era pior, com a venda indiscriminada de antibióticos pelas farmácias sem controle algum. A automedicação, contudo, passou a ser combatida no Brasil a partir daquele ano, com o início de vigência de portaria 354 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que obriga as farmácias a reter as receitas médicas para a venda de antibióticos.

Bactérias do “bem”

Números divulgados por uma empresa do ramo de saúde internacional, a IMS Health, demonstram que foram gastos no mundo cerca de US$ 40 bilhões em antibióticos só em 2013, total que coloca o medicamento em quinto lugar na lista dos maisvendidos em todo o planeta. É muita coisa para um tipo de remédio que, como diz o nome, é “antivida”.

Imaginar que a natureza e, mais especificamente, as bactérias – o primeiro ser vivo a habitar o nosso mundo há cerca de quatro bilhões de anos – não iriam reagir ao combate que lhe é dado, é não compreender a dinâmica da geração de vida. Desde o naturalista Charles Darwin, o pai da Teoria da Evolução, e que viveu no século 19, sabemos que a seleção natural estimula nos organismos vivos mecanismos que lhes permitam adaptar-se às condições do meio que habitam. As espécies, todas elas, lutam pela sobrevivência, nem que para isto tenham que sofrer mutações, ou seja, se transformar. Com as bactérias, não ocorreria de forma diversa, e as mutações resistentes estão aí para comprovar.

“Elas tiveram muito tempo para ‘testar’ e desenvolver diferentes estratégias de sobrevivência”, lembra Afonso Caricati Neto, chefe da disciplina de farmacologia do Departamento de Farmacologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp). O sucesso desses testes tornou-as resistentes não apenas aos antibióticos, mas também ao frio, ao calor, a acidez e a outros ambientes inóspitos. O homem, por sua vez, habita a Terra a meros 200 mil anos, mas vai ter de encarar o desafio de compreender a “inteligência” aprimorada pelas bactérias ao longo de milhares de milênios. Estamos em desvantagem, não há dúvidas. O farmacologista ressalta que os cientistas vêm avaliando várias possibilidades de interferir na “inteligência” das bactérias, incluindo o desenvolvimento de fármacos antimicrobianos direcionados para a inativação dos genes de resistência aos antibióticos, vacinas e outros. Todavia, de acordo com ele, ainda falta conhecimento suficiente para entender como elas desenvolvem a resistência aos antibióticos. “Ao pensar que o homem primitivo não dispunha de agentes antibióticos para combater as doenças causadas pela infecção bacteriana, talvez possamos buscar respostas alternativas sobre o funcionamento de nosso sistema imunológico. Talvez possamos desenvolver estratégias farmacológicas múltiplas, combinando o aumento da nossa defesa imunológica e o ataque seletivo contras as bactérias causadoras de doenças no homem”, explica Caricati Neto.

O ataque seletivo se faz necessário porque existem bactérias do “bem”, que vivem em harmonia no nosso organismo. De acordo com Ribeiro Filho, vacinas e drogas imunomoduladoras, que modificam ou melhoram a nossa imunidade, antiadesinas, que impedem ou dificultam a adesão do micro-organismo em determinados tecidos, podem ser aliadas na guerra contra os supermicróbios. “É importante lembrar, no entanto, que a quase totalidade destes germes, antes de expressarem esta característica de multirresistência, fazem parte da nossa flora normal, ou seja, vivem harmoniosamente em nosso organismo e muitos têm papel fundamental em nosso equilíbrio. É muito difícil agirmos de maneira tão seletiva, correndo o risco de desestruturarmos o nosso ecossistema”, avalia.

Contudo, convém lembrar que as bactérias do “bem”, que habitam o intestino humano, desenvolvem a tal super-resistência e têm a capacidade de transmitir essa defesa às bactérias do “mal”. “Por causa do local privilegiado onde vivem, elas entram emcontato com todo tipo de antibiótico ingerido pela pessoa ao longo da vida. Logo, aprendem a se defender de todos eles e eventualmente transmitir essa estratégia genética a outras bactérias”, enfatiza Caricati Neto. Essa transmissão acontece por meio de poros formados nas membranas que as revestem externamente. A transmissão também pode se dar em outros ambientes. Notícia divulgada na imprensa, em abril de 2014, informava que cientistas haviam identificado “80 genes únicos e funcionalmente resistentes aos antibióticos em bactérias de esterco de vaca”. Realizada pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos, a pesquisa serviu para comprovar que os animais de fazenda também podem transferir as bactérias para o homem.

Descompasso

O problema é complexo e não tem solução fácil, e, por suas múltiplas implicações, é de difícil equação. Não bastasse o descompasso entre o surgimento de novas bactérias resistentes e a descoberta de novas categorias de antibióticos e a fácil transmissão genética da resistência entre elas, esbarramos em obstáculos menos concretos e quase intransponíveis. O primeiro deles diz respeito ao modo como o homem lida com a cultura do antibiótico, se é que podemos chamar assim o costume irresponsável de achar que antibiótico serve para tudo.

Mais da metade de toda a medicação do gênero utilizada no mundo não é para tratamento humano. “Os antibióticos também são usados para aprimorar a agricultura, a pecuária e a piscicultura, para citar apenas alguns exemplos”, lembra o infectologista Ribeiro Filho. Para ele, os governos deveriam agir de forma organizada, baixando normas mais claras, proibindo o uso de determinados compostos ou em determinadas situações, fazendo campanhas educacionais para a conscientização da população. Da mesma forma, diz, deveriam dar apoio à instalação e melhoria de laboratórios de microbiologia, investindo na produção de novos compostos, principalmente onde não há interesse da indústria farmacêutica. E é preciso fiscalizar, “pois em todo o mundo ainda há muita falsificação ou produtos com quantidade de sal menor do que a recomendada”, alerta. Além disso, o tratamento de resíduos de água, de produtos químicos da indústria e de efluentes da agricultura pode lançar uma quantidade significativa de substâncias com atividade antibacteriana e de germes resistentes que podem ser mantidos no trato gastrointestinal de pessoas e animais. “Embora a correlação entre uso de antibióticos e o desenvolvimento de resistência pareça inevitável, sob uma perspectiva darwiniana, a relação é complexa”, pondera o professor da FMABC.

Outro fator a ser levado em conta no tocante às causas da geração dos micróbios super-resistentes é o círculo vicioso da prescrição de antibióticos. Já foi dito que eles são largamente usados, na metade das vezes de forma errada. O problema, portanto, envolve, neste caso, ao menos três agentes: laboratórios de análises clínicas, médicos e pacientes. “Hoje, o paciente pressiona o médico para a prescrição de antimicrobianos, e o sistema de saúde, que desestimula uma relação de confiança entre as duas partes, torna muitas vezes difícil para o profissional de saúde resistir a essa pressão”, conta Ribeiro Filho. Consequentemente, antibióticos são indicados como antitérmicos, sem a necessária evidência da origem da bactéria e sem a coleta de cultura para identificação do agente responsável. “E a estrutura de apoio, os laboratórios, não colaboram, demorando mais de uma semana para liberar o resultado de cultura e favorecendo o círculo vicioso”, diz. Ou seja, não se pede exame de cultura porque demora, e os laboratórios não aumentam a capacidade de processamento por não verem vantagem econômica num investimento que, no final das contas, vai ter pouco retorno (já que se pede pouco exame de cultura).

A mudança de comportamento é urgente e necessária. Enquanto ela não vem, os germes resistentes aos antibióticos fazem a festa. Sob a nossa perspectiva, uma triste festa, quando tomamos por base análises de especialistas. Um estudo realizado conjuntamente entre duas destacadas universidades americanas, a Ucla, em Los Angeles, na Califórnia, e a Stony Brook, em Nova York, demonstrou que o Staphylococcus aureus é a causa mais comum das infecções de pele em diversos países, ou seja, o micróbio se propaga pelos quatro continentes de modo alarmante. Outro estudo demonstra que a resistência do KPC e da Escherichia dobrou nos Estados Unidos nos últimos 12 anos. Cerca de 20% das contaminações por KPC são resistentes aos antibióticos atualmente disponíveis. No Brasil, dados divulgados pelo Ministério da Saúde informam que a bactéria foi responsável por 106 óbitos em 2010 e 2011. Em 2010, um surto de KPC causou 18 mortes no distrito federal, e, em São Paulo, de 90 casos de contaminação pela superbactéria, três pessoas morreram, segundo o ministério. E em janeiro de 2014, foram diagnosticados 11 pacientes com a bactéria apenas no Hospital Aroldo Tourinho, no município mineiro de Montes Claros.

Estratégias múltiplas

As estatísticas, entretanto, não são de todo confiáveis. Apesar de os hospitais brasileiros serem obrigados a manter uma equipe responsável pela vigilância das infecções hospitalares e pela advertência de doenças de notificação compulsória, há uma demora na tabulação dos dados apurados e na sua posterior divulgação. “Na comunidade a situação é diferente, não havendo necessidade de notificação, sendo o estudo da evolução da resistência quase sempre restrito à produção acadêmica”, esclarece Ribeiro Filho. Eles avançam sobre nós, e os antibióticos para combatê-los ainda não chegaram. Segundo dados divulgados pela Food and Drug Administration (FDA), o lançamento de antibióticos vem caindo vertiginosamente nos últimos dez anos, tendo sido colocados no mercado apenas dois novos remédios entre 2008 e 2012 (entre 1983 e 1987 foram 16). O FDA é o órgão governamental americano que responde nos Estados Unidos pelo controle dos alimentos, suplementos alimentares, cosméticos, equipamentos médicos, materiais biológicos, medicamentos e produtos derivados do sangue humano.

As razões para a demora na disponibilização de novos antibióticos são diversas. No entender de Ribeiro Filho, a pouca participação dos governos no processo de fabricação, deixando praticamente tudo a cargo de indústrias farmacêuticas privadas, é uma delas. Sendo o investimento alto e o retorno nem sempre garantido, elas pensam duas vezes antes de bancá-lo. O período entre a descoberta de uma nova droga, a passagem obrigatória por todas as fases que atestem a sua eficácia esegurança, e o seu lançamento comercial é de cerca de dez anos e ao custo de milhares de dólares. “Além disso, vivemos uma época de grandes fusões e aquisições, o que leva a um retardo no desenvolvimento de algumas drogas promissoras”, lamenta o infectologista. Ocorre, então, que um laboratório faz uma descoberta, mas, sem capacidade financeira para arcar com seu estudo, busca um laboratório maior que, depois de muita negociação, aceita participar do seu desenvolvimento. No meio do processo, há uma fusão entre laboratórios e as prioridades passarão a ser revistas, resultando num adiamento e consequente atraso no processo.

O professor da FMABC explica que são três as formas de se obter um novo antibiótico. Ele pode ser de uma nova classe com nova forma de ação, pode ser de uma nova classe com uma forma de ação já conhecida ou de uma classe já conhecida com uma forma de ação conhecida. As duas primeiras, em especial a primeira, são as mais necessárias para combater a resistência, mas são as mais arriscadas. Na última década, foram lançadas somente quatro novas classes de antimicrobianos, com formulações já conhecidas desde antes da década de 1990. “Os laboratórios preferem fazer pequenas modificações em medicamentos já conhecidos e testados. Mesmo assim, vários antibióticos foram retirados do mercado, com grande prejuízo para a indústria”, afirma Ribeiro Filho.

A batalha contra as superbactérias exige estratégias múltiplas, envolvendo órgãos públicos, privados e, também, ações individuais. “Sem laboratórios confiáveis e capacitados para a identificação da resistência, sem uma ação coordenada que receba as informações e estude em profundidade o problema e sua disseminação, sem a adesão de médicos, e de outros profissionais da saúde e da população em geral às medidas para diminuir a disseminação da resistência, não será possível, no futuro, mudar esse cenário”, alerta o infectologista.
Revista Problemas Brasileiros