domingo, 15 de novembro de 2015

Assédio é comum em trabalhos científicos de campo

Mais de 60% de jovens cientistas experimentaram episódios constrangedores

Shutterstock/ ChameleonsEye
Pesquisa com 142 homens e 516 mulheres em diversas disciplinas científicas constatou que muitos deles sofreram ou testemunharam assédio ou agressão sexual durante trabalhos em campo.


Ela era uma jovem e entusiasmada estudante de graduação quando viajou para seu sítio de pesquisa nos arredores uma cidadezinha rural em um país estrangeiro. Ela havia passado anos mergulhada em sua pesquisa e, como ocorre com muitos jovens cientistas, o estudo de campo era uma oportunidade vital para ganhar experiência e avançar sua carreira.

O assédio começou com perguntas íntimas sobre sua vida amorosa e comentários sexualmente sugestivos sobre seu corpo. De início, ela até entrou na brincadeira, trocando comentários provocantes com seus colegas majoritariamente homens. Mas ela já estava desconfortável quando colegas começaram a brincar que a venderiam para a prostituição. De repente, fotos pornográficas começaram a aparecer em seu espaço de trabalho privativo.

Quando caminhava desacompanhada pela cidade vizinha, assovios, chamados constrangedores e mãos desaforadas de homens locais a apalpavam e seguiam. No trabalho, ela só se sentia um pouco mais segura. A brincadeira tinha saído completamente do controle. Ao confrontar seu professor sobre a situação, ele lhe disse que ela estava sendo exageradamente sensível. O relacionamento deles deteriorou e ele acabou revogando sua promessa de financiar seus estudos de graduação.

A cientista postou sua história anônima no blog que a professora de antropologia Kathy Clancy, da University of Illinois, mantinha no site da Scientific American em2012. A história é uma de muitas que Clancy postou no blog e, de acordo com uma nova pesquisa liderada por ela mesma, é também um aspecto perturbadoramente comum em pesquisas de campo científicas.

Uma pesquisa envolvendo 142 homens e 516 mulheres de diversas disciplinas científicas constatou que muitos deles sofreram ou testemunharam assédio ou agressão sexual em trabalhos de campo.

Um relatório com a análise dos dados, divulgado em 16 de julho na publicação científica PLoS ONE, constatou que 64% dos entrevistados afirmaram ter sofrido assédio sexual e mais de 20% relataram ter sido vítimas de agressão sexual.

A pesquisa também estabeleceu que a maioria das vítimas eram pesquisadores jovens; estudantes de graduação ou pós-doutorandos. Cinco dos entrevistados que relataram assédio estavam no ensino médio na época do incidente. E, embora homens fossem tão vitimados quanto mulheres, a maioria teve problemas com seus pares; enquanto a maioria das mulheres foi abordada por superiores.

Embora exista uma extensa literatura sobre assédio e agressão sexual em meios científicos, como hospitais e campi universitários, esse é o primeiro estudo que examina a questão em estudos de campo científicos.

As viagens podem durar semanas ou meses, levando cientistas a áreas selvagens e remotas, longe de casa e de sistemas de suporte. E a pesquisa constatou que em campo, enquanto muitos cientistas não experimentam nenhum tipo de assédio, outros são vitimados. E quando isso acontece, eles muitas vezes não sabem como lidar com a situação.

Katie Hinde, uma coautora do estudo e bióloga evolutiva na Harvard University, que tem anos de experiência em campo, confessou ter sido levada às lágrimas ao ler as respostas da pesquisa.

“Eu lia uma série de histórias angustiantes de pessoas que sofrem atos inquestionavelmente abusivos dentro de suas próprias equipes de pesquisa, e o próximo registro na pesquisa era alguém dizendo que essa avaliação era estúpida e que isso não acontece”, desabafou Hinde em uma entrevista.

“O verdadeiro resultado de nosso estudo é que isso está acontecendo em números consideráveis com trainees [estagiários]; portanto, com pessoas que podem ser estudantes ou pós-doutorandos; pessoas realmente vulneráveis”, acrescentou.

Uma preocupação urgente para cientistas climáticos — e seus patrocinadores

A ciência climática é uma disciplina intensiva em trabalhos de campo. Estudar suas mudanças, passadas ou presentes, pode enviar pesquisadores ao Ártico ou à Amazônia, inserindo pequenas equipes de pesquisa em áreas isoladas.

Yarrow Axford, uma professora de ciências da Terra na Northwestern University, em Chicago, Illinois, que não esteve envolvido no estudo, escreveu em um e-mail que os dados mostram “o que acredito que muitos de nós que trabalhamos em ciência baseada em pesquisa de campo temos vivenciado, ou pelo menos suspeitávamos: que a cultura do trabalho em campo pode ser hostil a mulheres, tanto de modo sutil como mais descarado”.

“O estudo sugere que mulheres têm um bom motivo para serem cuidadosas como e com quem trabalham, e isso de fato é uma realidade lamentável a ser adicionada à lista de barreiras que podem excluí-las da ciência baseada em campo”, criticou Axford, acrescentando que ela mesma nunca experimentou pessoalmente qualquer tipo de assédio ou agressão.

Quando se trabalha em campo pode ser impossível evitar qualquer tipo de situação desconfortável. Há alguns anos, Axford estava em um estudo de campo e pegava voos de helicóptero em um remoto aeroporto ártico. O único banheiro no aeroporto estava “abarrotado do chão ao teto” com pornografia gráfica.

“Toda vez que tive que usar aquele ‘maldito’ banheiro, eu tinha que sair de lá entrando em uma sala cheia de pilotos masculinos e funcionários aeroportuários”, relembrou.

“Isso não é nada bom, mas acho que considero um certo desconforto social em campo como o preço do que estou fazendo para viver”.

Mas, enquanto todos cientistas têm de aceitar certo desconforto quando estão em campo, ela acrescentou que o assédio sexual precisa se tornar um ponto mais focal no planejamento dessas viagens de estudos.

Axford está se preparando para partir em uma viagem de estudo de campo na Groenlândia nos próximos dias e recentemente tornou-se responsável por estudos de campo que envolvem estudantes. Agora ela está considerando falar mais francamente com seus alunos, e com o resto de sua equipe, sobre uma política de tolerância zero para assédio em seus briefings [reuniões preparatórias de atividades] pré-campo.

Jeff Altschul, o presidente da Sociedade para Arqueologia Americana (Society for American Archaeology), que não esteve envolvido no estudo, declarou ao jornalUSA Today que patrocinadores da pesquisa de campo também precisam assumir mais responsabilidade. 

Axford, por sua vez, manifestou a esperança de que o estudo “chegará às mãos [ao conhecimento] de muitos pesquisadores influentes, e fará um ‘monte’ de pessoas pensarem sobre como fazer seus acampamentos seguros para todos”.

“Com base nesse estudo, parece que temos um longo caminho à frente para tornar isso uma realidade”, acrescentou.

“O que acontece em campo, morre em campo”

Os pesquisadores recrutaram entrevistados através de e-mails e redes sociais como Twitter, Facebook e LinkedIn. Os resultados preliminares da pesquisa foram divulgados no ano passado. Dos 122 entrevistados no campo da antropologia biológica, mais da metade relatou ter experimentado ou testemunhado assédio ou agressão sexual.

Katie Hinde espera que os resultados diminuam à medida que mais cientistas respondam à pesquisa, o que normalmente é o caso quando o tamanho de uma amostra aumenta. Nesse caso, porém, os resultados da realidade pioraram.

Ela até recebeu e-mails de cientistas que disseram ter recusado participação na pesquisa, porque reviver suas experiências seria muito traumático.

Pesquisas são inerentemente limitantes. Clancy, Hinde e suas equipes tentaram garantir um equilíbrio de entrevistados que passaram ou não por assédio, mas pode ser difícil controlar quem responde francamente. Dito isso, Hinde afirmou que seus resultados parecem consistentes com outras pesquisas sobre assédio, que se concentraram mais em experiências em outros ambientes científicos, como hospitais, campus universitários, ou nas forças armadas.

“Onde quer que estudos de assédio sexual tenham sido realizados, seja nas áreas de medicina, nas forças armadas, em campi universitários, os números registrados são bastante elevados e consistentes com os números em nosso estudo”, salientou Hinde, acrescentando “e esses são estudos que utilizam diferentes métodos para acessar essas informações”.

As implicações para a ciência poderiam ser profundas. Em uma profissão historicamente dominada por homens, o assédio ou a agressão sexual durante estudos de campo poderiam afastar jovens cientistas talentosas antes mesmo que suas carreiras tenham de fato começado.

Hinde garantiu que as políticas de assédio das instituições financiadoras do estudo de campo, como uma universidade, se aplicariam aos sítios pesquisados. Mas muitas pessoas simplesmente não sabem disso de acordo com as respostas à pesquisa. Embora não haja muitos dados para sustentar uma resposta aparentemente coletiva, Hinde informou que muitos entrevistados descreveram uma atitude do tipo “o que acontece em campo, morre em campo”.

“Suponho que, sim, alguns acadêmicos consideram o ‘campo’ diferente de outras áreas de trabalho, como o escritório, o laboratório ou a sala de aula, de uma forma que relaxa ou suspende normas de comportamento aplicáveis ao local de trabalho”, admitiu ela em um e-mail de follow-up.

Esse tipo de comportamento durante estudos em campo, um período vital no desenvolvimento da carreira de um jovem cientista, se não for um componente exigido para sua graduação, “tem implicações para todas as ciências”, advertiu Hinde.

“Resumindo: suspeito fortemente que todas essas experiências desempenham um papel no por que as pessoas abandonam a ciência e isso empobrece a todos nós”, resumiu Hinde. “Isso empobrece o esforço científico”.
Scientific American Brasil

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