terça-feira, 20 de setembro de 2016

Então quer dizer que quando o imposto sobe, quem ganha são os criminosos?



Exatamente. Quando o imposto aumenta, o cigarro produzido no Brasil fica mais caro para o consumidor final. Com o cigarro nacional mais caro, o crime organizado leva vantagem na comercialização e distribuição do cigarro contrabandeado. Quanto mais o imposto cresce, mais o crime organizado se beneficia.
 http://www.fncp.org.br/impostocrescecrimeagradece/

O aumento do imposto do cigarro contribui para o aumento do contrabando?



Desde 2011, ano em que entrou em vigor o atual modelo tributário do setor, e que previa aumentos sucessivos de impostos, até 2015, o volume do mercado legal de cigarros no país teve uma redução de 8% ao ano. Já o volume do mercado ilegal cresceu 9% ao ano no mesmo período.
 http://www.fncp.org.br/impostocrescecrimeagradece/

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A gênese do jihadismo

Esforço de elevação espiritual, jihad pode também significar o combate aos infiéis e aos hipócritas. Aqueles que o usam hoje para justificar uma conduta ultraviolenta nutrem um sonho de conquista inspirado por uma ideologia rígida advinda de uma dupla filiação: a Irmandade Muçulmana e o salafismo wahabita, amplamente d
 Nabil Mouline





Fenômeno complexo e multidimensional, o jihadismo é, antes de tudo, uma ideologia global. Resultado de uma bricolagem intelectual que resulta da deturpação de conceitos, símbolos e imagens de origem muçulmana e europeia, seus depositários pretendem oferecer aos “fiéis” um novo começo, uma nova identidade e um novo modo de vida para vencer aqui embaixo e no além. Em suma, é uma representação de mundo que dá a certeza de pertencer a algo maior que si mesmo: o grupo de eleitos encarregado por Deus de restabelecer a verdadeira religião e de reunificar a oumma (a comunidade dos fiéis) sob a égide do califado – a monarquia universal islâmica –, antes de se lançar à conquista do mundo e obter a salvação. Retraçar a gênese e o desenvolvimento dos principais afluentes da ideologia jihadista ajuda a compreender melhor seu poder de atração e sua eficácia, de Saint-Denis (França) a Karachi (Paquistão).

A exemplo de outras ideologias extremistas, o jihadismo finca suas raízes no desencantamento provocado pela Primeira Guerra Mundial. O desmantelamento do Império Otomano, a abolição do califado por Mustapha Kemal Ataturk, a dominação ocidental e a poderosa ascensão de novas formas de socialização criaram uma verdadeira desordem em alguns centros muçulmanos. Para sair de tal crise existencial, alguns militantes, letrados e ulemás (juristas e teólogos) viram no islã o único remédio. Diversos projetosmais ou menos bem-sucedidos apareceram também entre as duas guerras. O maisimportante entre eles é, sem dúvida, a Irmandade Muçulmana.

Inspirada na Associação Cristã de Moços, a confraria Irmandade Muçulmana surgiu no Egito por volta de 1928. Para seu fundador, Hassan al-Banna, o islã é uma ordem superior e total que deve reinar absoluta no espaço social muçulmano, pois é ao mesmo tempo “dogma e culto, pátria e nacionalidade, religião e Estado, espiritualidade e ação, Alcorão e espada”. Para atingir tal objetivo, projeta uma estratégia teológica: é preciso em primeiro lugar islamizar a sociedade pela base, passando por cima de todas as escolas jurídicas e teológicas, antes de tomar o poder e criar Estados islâmicos. Tais Estados, que garantem a supremacia da xaria (lei islâmica), se envolveriam aos poucos em um processo de integração por meio de programas de cooperação. Esse processo deve levar finalmente à abolição das fronteiras e à proclamação do califado.

O fundador da Irmandade Muçulmana nunca definiu os princípios e as estruturas do Estado islâmico que desejava instaurar. Sempre se contentou com slogans e fórmulas vazias, às vezes até contraditórias. Mas os traços encontrados aqui e ali em alguns de seus escritos, bem como sua ação no comando da confraria, demonstram bem que ele tinha uma queda pelo elitismo, pelo dirigismo e pelo autoritarismo. Al-Banna se declarava de maneira bem clara contra certos princípios democráticos, principalmente a liberdade, a separação entre política e religião, o multipartidarismo e a divisão dos poderes. Para enfrentar os desafios internos e externos, a oumma deve ser, segundo ele, dirigida por uma só lei (a xaria), por um só partido (a Irmandade Muçulmana) e por um só chefe (o califa).

Graças à simplicidade relativa de seu discurso e ao zelo de seus membros, a confraria aumentou consideravelmente sua base de apoio no Egito e em outras partes do mundo árabe. Não conseguiu, todavia, realizar seu principal objetivo: tomar o poder, condição indispensável para restabelecer a cidade de Deus e obter a salvação. Desde o fim dos anos 1940, esse fracasso impulsionou uma minoria decidida a adotar posições cada vezmais radicais, principalmente no tocante ao uso da violência. As coisas se aceleraram de maneira dramática durante a década seguinte, em razão da repressão sem precedentes conduzida pela junta militar recém-instalada no poder no Cairo.

Intelectualmente atormentado, Sayyed Qotb se uniu à confraria durante esse período de crise. Preso pelo presidente Gamal Abdel Nasser, operou uma reviravolta ideológica que teria consequências enormes no campo político-religioso árabe-muçulmano. Ele considerava, na verdade, que o mundo no qual vivia caíra na ignorância e na descrença (al-jahiliyya). Os verdadeiros fiéis, então ultraminoritários, deveriam realizar um êxodo (al-hijra), separando-se espiritual e fisicamente das sociedades ímpias. Após terem criado uma plataforma espiritual e temporal sólida, os escolhidos deveriam se lançar à conquista do mundo ímpio no âmbito de um jihad integral. Inspirado no indo-paquistanês Abul Ala Mawdudi, partidário fervoroso da ideia do califado, Qotb incitou os escolhidos a restabelecer a soberania absoluta de Deus (al-hakimiyya) mediante a instauração do Estado e da lei islâmicos para libertar os fiéis do materialismo ocidental. Essa cultura de enclave, que não é nova na história muçulmana, tornou-se muito rapidamente o pilar político do jihadismo contemporâneo.


Apesar de sua popularidade e de sua adoção por certo número de grupos radicais a partir da década de 1960, as ideias de Al-Banna e de Qotb foram freadas em sua difusão por um obstáculo estrutural: seus autores não eram ulemás depositários de uma tradição secular, mas reles intelectuais e militantes islamitas, uma categoria que ainda não encontrou lugar no campo político-religioso. Ao longo dos anos 1960 e 1970, diversos grupos jihadistas (Shabab Muhammad, Al-Jihad e Al-Takfir wal-Hijra) se esforçaram para remediar esse problema utilizando insistentemente referências clássicas, em especial os escritos de Ibn Taymiyya, jurista-teólogo do século XIII, e de seu discípulo Ibn Qayyim al-Jawziyya. Em vão.

Em 1979, a invasão soviética do Afeganistão possibilitou ao jihadismo dotar-se de uma doutrina teológica e jurídica bem estabelecida: o wahabismo. Graças aos petrodólares da Arábia Saudita, a tradição pôde se impor no campo islâmico como uma nova ortodoxia. Nascido durante a segunda metade do século XVIII na Arábia Central, o wahabismo é uma derivação do hanbalismo, uma das quatro grandes escolas jurídicas do sunismo. Pregador intransigente, seu fundador, Mohammed ibn Abdelwahhab (1703-1792), não recuava diante de nada para impor o que considerava a única verdadeira religião, aquela do Profeta e dos piedosos ancestrais, al-salaf al-salih, de onde surgiu o termo “salafismo”, outra denominação dessa tradição. Em 1744, ele aliou-se aos Saud para erguer, com base em sua doutrina, uma entidade política: o primeiro Estado saudita, instalado em 1818.

Seguido cegamente por seus discípulos, Ibn Abdelwahhab garantia que a única via possível para a salvação era a restauração da religião “pura”. Para tanto, seria necessário (re)descobrir o conceito fundamental do islã: a unicidade divina – al-tawhid, origem do nome de muitos movimentos jihadistas. Essa unicidade só pode ser realizada com uma condição: a observação estrita da ortodoxia e da ortopraxia, conforme a doutrina hanbalita. Todos aqueles que não aderem a esse dogma são classificados como hipócritas, desgarrados, hereges ou infiéis. Muitas doutrinas e práticas do sufismo, tais como o culto dos santos, as peregrinações extracanônicas e as práticas divinatórias, são associadas a formas de idolatria que devem ser combatidas por todos os meios. Do mesmo modo, indivíduos e governos que recorrem a leis consideradas não islâmicas, principalmente as leis positivas, são declarados apóstatas.

Tornar-se e permanecer um verdadeiro monoteísta supõe aplicar estritamente as percepções divinas a todos os âmbitos da vida. Para atingir tal objetivo, os wahabitas preconizam uma interpretação rigorosa dos textos sagrados. A xaria e, principalmente, os castigos corporais devem, segundo eles, ser aplicados à risca.

Para traçar verdadeiras fronteiras, simbólicas e reais, entre a religião autêntica e as falsas, os defensores do wahabismo desenvolveram o princípio al-wala wal-bara (a fidelidade e a ruptura). O fiel deve fidelidade e lealdade absolutas a todos os outros membros da comunidade. Por outro lado, as relações com os infiéis se limitam teoricamente à conversão, à submissão ou à guerra. Por essa lógica, os muçulmanos que habitam territórios ímpios devem, cedo ou tarde, realizar uma hégira, um êxodo, em direção à casado islã para se abastecer de forças sagradas antes de partir novamente para o jihad.


Armados do projeto de Al-Banna, do mapa de Qotb, da ortodoxia wahabita e da vitória contra os soviéticos, os jihadistas creem deter enfim a fórmula ideológica ideal para revitalizar o califado e a era de ouro do islã. Conforme atestam bem as profecias de fé que circulam na internet, principalmente aquela publicada pelo chefe da Organização do Estado Islâmico (OEI) do Iraque, Abou Omar al-Baghdadi, em 2007, essa ideologia evoluiu muito pouco durante as últimas décadas. As únicas novidades a destacar são a subida ao poder do discurso antixiita – em razão dos contextos saudita, iraquiano e sírio –, o desenvolvimento de escritos que legitimam todas as formas de violência e os relatos messiânicos.

Para conseguir fazer triunfar essa que creem ser a verdadeira religião, os jihadistas elaboram desde o começo dos anos 1990 diversas estratégias ao mesmo tempo concorrentes e complementares. A Al-Qaeda baseia sua existência na ideia de que a oumma é alvo de incessantes agressões internas e externas. Os muçulmanos do mundo inteiro têm a obrigação, segundo ela, de prestar socorro a seus correligionários em apuros. Tal solidariedade orgânica se expressa por meio de um jihad global, ora contra as grandes potências, ora contra os regimes árabe-muçulmanos que as apoiam. O objetivo final é expulsar tais potências dos domínios do islã, converter os regimes considerados apóstatas e restabelecer o califado. Considerando-se a vanguarda da comunidade dos fiéis, os membros da Al-Qaeda querem fazer do Afeganistão o lar de uma nova epopeia. Em 1998, Osama bin Laden e seus imediatos também juraram lealdade ao líder dos talibãs, o mulá Omar, como comandante dos fiéis, declarando o jihad às potências ocidentais. Uma série de grandes atentados se seguiu, entre eles o de 11 de setembro de 2001.

Levando em conta as consequências dos fracassos da Al-Qaeda, a OEI adotou uma ação “glocal”, ou seja, desenvolve sua capacidade de pensar globalmente e agir localmente. Os dirigentes da organização, que se consideram por sua vez os novos escolhidos, preferiram de imediato dotar-se de uma plataforma no próprio centro do mundo árabe-muçulmano e garantir sua autonomia financeira antes de enviar seus soldados para atacar o mundo. Para isso, seguiram um plano em três etapas, publicado entre 2002 e 2004: “Sobre a administração da selvageria: a etapa mais crítica pela qual a comunidade de fiéis passará”. Em termos mais simples e diretos, esse opúsculo explica como os jihadistas podem aproveitar os acontecimentos e as circunstâncias, no plano local ou internacional, para dominar um território. Uma vez conquistado, este pode tornar-se uma plataforma não somente mediante o uso de uma violência extrema e de uma propaganda implacável, mas também se inspirando na arte da guerra e no know-how administrativo ocidentais. O sucesso parcial dessa estratégia e a proclamação de um “califado” em junho de 2014 foram replicados no mundo muçulmano e em outras partes do planeta, no Sinai, na Líbia, no Sahel, na Tunísia, na Arábia Saudita e na França... 

Nabil Mouline
*Nabil Mouline é pesquisador no Centre d’études interdisciplinaires des faits religieux (CEIFR) na École des hautes études en sciences sociales (EHESS). É autor, entre outras, da obra Les clercs de l’islam. Autorité religieuse et pouvoir politique en Arabie Saoudite (XVIIIe-XXIe siècle)[Os clérigos do islã. Autoridade religiosa e poder político na Arábia Saudita (séculos XVIII a XXI)], Presses Universitaires de France (PUF),PARIS, 2011

Ilustração: João Montanaro
Le Monde Diplomatique Brasil

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

COMO EVITAR O CAOS CLIMÁTICO?


Da ciência à política


A 21ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 21), que será realizada em Paris de 30 de novembro a 11 de dezembro, não tem o direito de fracassar. O tempo urge, e o conjunto dos países industrializados precisa se comprometer a reduzir drasticamente suas emissões de gases do efeito estufa.

Philippe Descamps




Durante a noite polar, a temperatura dificilmente ultrapassa os 60 °C negativos nos morros da Antártida. As novidades, além de poucas, não eram boas. O presidente norte-americano Ronald Reagan acabara de divulgar sua iniciativa de defesa estratégica para desafiar uma gerontocracia soviética incapaz de sair da estagnação econômica e do atoleiro afegão. Dentro das frágeis barracas da base de Vostok, cantavam-se músicas de Georges Brassens e Vladimir Vissotsky para manter o moral. Abastecidos por aviões norte-americanos, cientistas franceses e soviéticos enfrentavam os elementos da natureza a fim de descobrir juntos os segredos do clima. Objetivo: remontar no tempo, descendo cada vez mais nas entranhas da geleira de 3.700 metros de espessura que jazia sob seus pés. Em fevereiro de 1985, a equipe conseguiu extrair fragmentos de gelo que conservavam informações cruciais sobre o ar e as temperaturas dos últimos 160 mil anos. Após dois anos de exames, esses fragmentos trouxeram enfim a prova procurada: o globo foi às vezes mais quente que hoje, às vezes mais frio, mas essas variações acompanharam fielmente as da concentração de gás carbônico (CO2). Ora, sabe-se que desde a Revolução Industrial, sobretudo desde meados do século XIX, o teor de CO2 na atmosfera não para de aumentar e atualmente ultrapassa todas as referências históricas. Essas descobertas, corroboradas pela perfuração de sedimentos marinhos e pelo estudo de outros gases do efeito estufa, como o metano, convenceram as Nações Unidas a criar, em 1988, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Devotando-se ao estudo da literatura científica, o IPCC tem por missão colocar o mundo a par do estado atual dos conhecimentos. Entre seu primeiro relatório, publicado em 1990, e o quinto, concluído em 2013,1 ele apresenta suas conclusões com um grau de probabilidade cada vez mais elevado: “O aquecimento do sistema climático é incontestável. Inúmeras mudanças observadas desde os anos 1950 não têm precedentes há décadas, talvez milênios”, diz o último relatório. “A atmosfera e os oceanos se aqueceram, a cobertura de neve e gelo diminuiu, o nível dos mares subiu e as concentrações dos gases do efeito estufa aumentaram.” Os especialistas já não têm dúvidas quanto às causas desse fenômeno: “A influência do homem sobre o sistema climático foi claramente estabelecida [...]. Para conter a mudança do clima, será necessário reduzir drástica e duradouramente as emissões de gases do efeito estufa (GEEs)”.

Com base em modelos, o IPCC apresenta um resumo das evoluções recentes e, sobretudo, projeções para as décadas futuras em função de quatro cenários de emissões de gases do efeito estufa. A hipótese mais pessimista (RCP 8,5) – pouco esforço de redução – prediz, até o ano de 2100, temperaturas mais elevadas em cerca de 4 °C na escala global e em cerca de 6 °C nas terras emersas, ou seja, o caos. Nem os cenários médios (RCP 6,0 e RCP 4,5) podem garantir uma estabilização a médio prazo. Só a hipótese otimista (RCP 2,6) permitiria manter a alta da temperatura global abaixo dos 2 °C, um patamar que não pode ser ultrapassado e, de preferência, nunca ser alcançado (ver artigo de Eric Martin na p. 30). Além disso, deve-se contar com aquecimento fora de controle, degelo rápido na Groenlândia, modificação da circulação oceânica profunda e derretimento do permafrost2 nas terras boreais, o que acarretaria a liberação maciça de CO2.

Contudo, a hipótese otimista supõe a contenção imediata das emissões, que devem baixar para zero em duas ou três gerações. Oficialmente, todos os Estados reconhecem esse imperativo desde a Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, em 1992, e da adoção da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Mudanças do Clima. Depois dessa ode mundial à salvaguarda do planeta, entretanto, a situação ficou ainda mais grave. Em 2013, o total de emissões de CO2 ultrapassou 34,3 bilhões de toneladas, contra 23 bilhões em 1990.3 De 1980 a 2011, a “pressão antrópica” (a parte do aquecimento resultante das atividades humanas) dobrou por causa da emergência de novos países industrializados e do aumento da população.

O clima surge como um multiplicador de desequilíbrios, desigualdades e ameaças a que estão sujeitos os mais pobres. Aridez, furacões, monções desreguladas: o Sul já padece dos efeitos das mudanças sem ter conhecido os benefícios do desenvolvimento. Na África, o deserto avança pelo Sahel e 620 milhões de pessoas ainda não têm acesso à eletricidade. Uma responsabilidade colossal cabe aos países desenvolvidos, em particular aos Estados Unidos (ver mapa na p. 24). Desde sua criação, a empresa petrolífera Chevron teria, sozinha, mandado para a atmosfera mais de dez vezes o que todos os países da África subsaariana (fora a África do Sul) emitiram desde 1850; a Gazprom, tanto quanto a África; e a Saudi Aramco, mais que a América do Sul inteira.4

A maior parte do transtorno se deve à utilização do carbono, do petróleo e do gás. Todavia, em 2013, as subvenções públicas aos combustíveis fósseis chegaram a 480 bilhões de euros, isto é, mais de quatro vezes a soma das que foram concedidas às energias renováveis.5

Diante de tal desafio, a lógica da relação de forças entre nações se torna inoperante e o caminho da cooperação continua acidentado. Após o Senado norte-americano se recusar a ratificar o Protocolo de Kyoto, em 1997,6 e depois do fiasco de Copenhague, em 2009, a Conferência de Paris foi minuciosamente preparada apostando em declarações voluntárias: as “contribuições previstas determinadas em nível nacional”. Em meados de outubro, 148 países, representando 87% das emissões, haviam apresentado seus roteiros. Entre os grandes poluidores, faltaram apenas as contribuições do Irã e da Arábia Saudita. Cada qual alardeia grandes ambições: a China pretende alcançar seu pico de emissões e iniciar a redução em 2030; a União Europeia promete eliminar 40% das suas em 2030 (em relação a 1990); e os Estados Unidos anunciam uma queda de 26% em 2025 (em relação a 2005).

No entanto, a embaixadora francesa encarregada das negociações sobre a mudança climática, Laurence Tubiana, reconhece: “Ainda que positivas, essas contribuições não serão suficientes para nos colocar, depois da Conferência de Paris, num rumo compatível com o limite de 2 °C. Por isso, o acordo de Paris deverá conter dispositivos que permitam fomentar regularmente o entusiasmo comum no curso do tempo, para que cada período de contribuições seja mais ambicioso e possamos cumprir nossos objetivos de longo prazo”.7 Para obter um acordo universal, que entraria em vigor a partir de 2020, a estratégia da Presidência francesa se resume em evitar questões incômodas. Há fortes dúvidas quanto ao objetivo global de redução, à definição de um máximo mundial de emissões, aos mecanismos de controle... A taxação dos transportes marítimos e aéreos continua sendo um tabu. E o questionamento de um modo de produção que está levando a humanidade para o abismo ainda vai demorar.

Alguns países, como os Estados Unidos, a Alemanha e os emirados do Golfo, não conseguirão jamais apagar os traços que deixaram na atmosfera; sua “dívida climática” é irremissível. As nações do Sul receberiam deles uma compensação financeira para poder alcançar um desenvolvimento sem carbono, saltando a etapa mortífera das energias fósseis. Mas o objetivo de US$ 100 bilhões por ano, consagrados a esse fim, ainda não encontrou quem o financiasse.

A preparação dessa 21ª conferência se caracteriza pelo papel crescente que lá desempenham as multinacionais com este credo: o direito do comércio terá de prevalecer sempre sobre a ambição social e ambiental. E os dirigentes que, com a mão no peito, virão propor um acordo sobre o clima negociam na sombra a criação do Grande Mercado Transatlântico (GMT), que visa “garantir um ambiente econômico aberto, transparente e previsível na questão da energia, e um acesso ilimitado e sustentável às matérias-primas”.8

O caos climático só será evitado caso a maior parte das reservas de energia fóssil permaneça no solo. O desafio coletivo consiste em tornar esse esforço aceitável para todos, pondo-se fim ao aumento das desigualdades que desencoraja a solidariedade. Não convém esquecer a proclamação de George H. Bush ao chegar à Cúpula da Terra, no Rio: “O modo de vida americano não é negociável”. Um modo de vida impossível de generalizar e cuja perpetuação nos custou vinte anos, tornando decisões futuras ainda mais difíceis de tomar.

O risco será deixar o tempo correr, enquanto se insiste em soluções quiméricas ou marginais, como a geoengenharia, que pretende fixar mais o carbono no solo ou reduzir a radiação solar. Os países do norte da Europa abriram um caminho novo propondo a partir do início dos anos 1990 uma “taxação do carbono”. Conseguiram uma redução significativa dos gases do efeito estufa sem renunciar à prosperidade: liberaram créditos para melhorar a eficácia energética dos transportes e construções, e para pesquisar energias renováveis. Mas estas não atenderão a uma demanda crescente, pois logo começarão a rarear os metais indispensáveis às instalações eólicas ou solares.9 A via do “reduzir, reutilizar, reciclar” leva a repensar o consumo, fundamentando a qualidade de vida em outros critérios que não a acumulação.

Os otimistas têm por si os últimos números da Agência Internacional da Energia: em 2014, a economia mundial progrediu 3%, enquanto as emissões de CO2 permaneceram constantes.10 Efeito conjuntural ou início da dissociação? Acharemos motivos mais sólidos para ter esperança na tomada de consciência dessas apostas, com o despertar de uma miríade de associações, e nas posturas adotadas por algumas autoridades morais, como o papa Francisco.

A multiplicação dos acidentes ecológicos vem forçando a China a questionar seu desenvolvimento; e a candidata à Presidência dos Estados Unidos, Hillary Clinton, também deverá rever sua posição, renunciando ao projeto do oleoduto Keystone XL, concebido para facilitar a importação, pelos norte-americanos, das areias betuminosas de Alberta – um símbolo de desperdício anacrônico. A Convenção sobre a Proteção da Camada de Ozônio se tornou, em 2009, o primeiro tratado da história a ser universalmente ratificado; a salvaguarda do clima requer uma mobilização coletiva não menos ambiciosa.

O PLANETA COM FEBRE

Para entender a importância das medidas recentes e das hipóteses do IPCC (à direita), é preciso olhar com cuidado a escala de tempo, bem diferente do gráfico à esquerda. A evolução das temperaturas e do CO2 nos últimos 800 mil anos na Antártida pôde ser estabelecida graças à extração de gelo realizada por cientistas europeus em 2007.

Philippe Descamps
Jornalista

1 Ao relatório do grupo 1, “Os elementos científicos”, juntaram-se em 2014 os do grupo 2, “Incidências, adaptação e vulnerabilidade”, e do grupo 3, “A atenuação da mudança climática”. Todos os relatórios estão em .

2 Solo profundo congelado.

3 “Trends in global CO2 emissions: 2014 Report” [Tendências nas emissões globais de CO2: Relatório de 2014], Netherlands Environmental Assessment Agency, Bilthoven-La Hague, 16 dez. 2014.

4 Richard Heede, “Tracing anthropogenic carbon dioxide and methane emissions to fossil fuel and cement producers, 1854-2010” [Rastreando as emissões antropogênicas de dióxido de carbono e metano por parte de produtores de combustível fóssil e cimento, 1854-2010], Climatic Change, v.122, n.1, Berlim, jan. 2014; e CAIT Climate Data Explorer 2015, World Resources Institute, Washington, DC. Disponível em: .

5 “World Energy Outlook” [Perspectiva da Energia Mundial], Agência Internacional de Energia (AIE), Paris, 2014.

6 Ratificado por 190 países, prevê compromissos de redução dos gases do efeito estufa para 38 nações industrializadas.

7 .

8 Item 37 da diretiva europeia de negociação, 13 jun. 2013, tornado público em 9 de outubro de 2014.

9 Cf. a contribuição de Philippe Bihouix em Économie de l’Après-Croissance [Economia do pós-crescimento], Les Presses de Sciences Po, Paris, 2015.
Le Monde Diplomatique Brasil