sábado, 28 de novembro de 2015

Em 1991, por trás do slogan "morte zero", a hecatombe


O exame dos dados referentes às vítimas da guerra em 1991 mostra que as “leis da guerra” não levaram em conta as mudanças na tecnologia militar. A regra da “proporcionalidade” exige que, para proteger os civis, as operações militares tenham o cuidado de poupar a população e os alvos civis
por Betty Mindlin


Em 1991, o tratamento dado pela mídia ocidental à Guerra do Golfo transmitiu a impressão de uma guerra limpa. Na época, o Ministério da Defesa norte-americano oferecia aos jornalistas boletins que pareciam shows. Para quem não conheceu a Guerra do Vietnã, as demonstrações de Colin Powell, então chefe de Estado-maior das Forças Armadas norte-americanas, e Dick Cheney, então ministro da Defesa, chegavam quase a evocar aquelas brincadeiras de escola em que os meninos exibiam seus brinquedos militares.1

Menos mostrado foi o destino do povo iraquiano após a guerra. A maioria dos jornalistas tinha dificuldade em tornar “assunto” a miserável sorte dos habitantes mais vulneráveis do país. Principalmente quando se tratava de crianças e idosos sofrendo de “taxa de mortalidade excessiva”. Nossa investigação nos levou a “desmembrar” o número total de vítimas iraquianas em cinco categorias: civis vitimados pelos efeitos diretos da guerra; por seus efeitos indiretos; por revoltas posteriores ao conflito; militares diretamente vitimados pela guerra; e aqueles que pereceram em decorrência de revoltas que se seguiram ao conflito.

A primeira categoria é a que vem à mente em primeiro lugar. Ela inclui mortes ocorridas quando as bombas erram o alvo, quando os atingem mas matam civis, quando civis são pegos no fogo cruzado etc. Com base em testemunhos diretos e dados iraquianos corroborados por testemunhos diretos, estimamos que cerca de 3.500 civis morreram dessa maneira. Se a contagem das vítimas parasse aí, o mito da guerra “limpa” seria maisfácil de ser sustentado.

Mas, antes da guerra de 1991, muitos estudos indicavam que a mortalidade de crianças e recém-nascidos tinha caído brutalmente na década anterior. Durante o verão [do Hemisfério Norte] de 1991, pouco antes da derrota das Forças Armadas do Iraque, uma equipe de pesquisadores questionou mulheres iraquianas em idade fértil sobre o destino das crianças nascidas depois de 1985. Elas indicaram a data de nascimento de cada criança e, quando era o caso, a da morte. A análise desses dados levou a uma taxa de mortalidade infantil, em 1991, de 93 crianças por mil, em vez da taxa de 37 por mil esperada caso se mantivesse a tendência anterior. A diferença entre as cifras dá um número de 111 mil “mortes em excesso” em 1991, ligadas aos efeitos indiretos da guerra, os quais incluem as perturbações causadas à sociedade e à economia do país.

Os especialistas militares permitem que façamos uma estimativa do número de mortes nas outras categorias. Entre 49 mil e 63 mil soldados e oficiais iraquianos foram mortos de janeiro a março de 1991 (o bombardeio ao Iraque começou em 17 de janeiro de 1991, e o cessar-fogo foi alcançado em 3 de março). Cinco mil militares e cerca de 30 mil civis (três quartos dos quais tinham tomado parte no combate contra o regime de Saddam Hussein) foram vítima das revoltas internas que se seguiram à vitória dos exércitos da coalizão.

É evidente que o número de mortes decorrentes dos efeitos indiretos das operações militares – sanitários, por exemplo – foi muito superior ao das outras categorias. E é após a guerra que essas vítimas se tornam as mais numerosas. Cerca de 70 mil mortes seriam de crianças com menos de 15 anos.

Como explicar tais mortes? A destruição da infraestrutura do país contribuiu enormemente para o aumento da mortalidade. A morte de civis após um conflito armado deve-se a mecanismos quase idênticos àqueles que causam mortes após um terremoto, inundação ou outro desastre natural. Em sua vida cotidiana, a população conta com recursos de infraestrutura que lhe permitem dispor de água potável, eletricidade, aquecimento, alimentação e um sistema operacional de distribuição de medicamentos. Quando essas infraestruturas são destruídas, a vida dos habitantes fica gravemente ameaçada.

O exame dos dados referentes às vítimas da guerra em 1991 mostra que as “leis da guerra” não levaram em conta as mudanças na tecnologia militar. A regra da “proporcionalidade” exige que, para proteger os civis, as operações militares tenham o cuidado de poupar a população e os alvos civis. Aqueles que preparam um ataque armado devem, portanto, tomar todas as medidas necessárias na escolha dos meios e métodos para minimizar o número de civis mortos e feridos, e evitar danos aos equipamentos que lhes são indispensáveis. Sobretudo quando esses “danos colaterais” parecem desproporcionais em relação à vantagem militar direta que o exército pretende obter.

Essa regra costuma aplicar-se às vítimas civis diretamente causadas pelas operações de guerra. Porém, quando as guerras são conduzidas de modo que o número de vítimas nessa categoria pareça limitado durante o período dos combates armados, ao preço de sofrerem uma verdadeira explosão após o fim do conflito, tal regra deve ser questionada. Assim como o “cálculo” – comparar a vantagem militar adquirida ao número de mortes de civis, diretas e indiretas, relacionadas aos meios utilizados.2

Além disso, as sanções econômicas punem os civis de tal maneira que constituem uma extensão do conceito de guerra, devendo ser também apreciadas dessa forma. De qualquer modo, todos sabemos que, quando a diplomacia falha, são os civis que sofrem.



Betty Mindlin Antropóloga, é autora de Diários da floresta, entre outros livros. Faz parte do Conselho Editorial de Le Monde Diplomatique Brasil.


1 Ler Ignacio Ramonet, “La télé loin des fronts” [A TV longe dos fronts]; Serge Halimi, “Des médias en tenue camouflée” [A mídia de uniforme camuflado]; e John Berger, “Guerre et mensonges” [Guerra e mentiras], Le Monde Diplomatique, fev., mar. e abr. 1991, respectivamente.
2 Ler René Dumont, “La population irakienne punie par l’embargo” [População iraquiana punida pelo embargo]; e Alain Gresh, “Muette agonie de l’Irak” [Agonia muda no Iraque], Le Monde Diplomatique, dez. 1991 e jul. 1999, respectivamente
Le Monde Diplomatique Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário