quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

A gênese do jihadismo

Esforço de elevação espiritual, jihad pode também significar o combate aos infiéis e aos hipócritas. Aqueles que o usam hoje para justificar uma conduta ultraviolenta nutrem um sonho de conquista inspirado por uma ideologia rígida advinda de uma dupla filiação: a Irmandade Muçulmana e o salafismo wahabita, amplamente d
 Nabil Mouline





Fenômeno complexo e multidimensional, o jihadismo é, antes de tudo, uma ideologia global. Resultado de uma bricolagem intelectual que resulta da deturpação de conceitos, símbolos e imagens de origem muçulmana e europeia, seus depositários pretendem oferecer aos “fiéis” um novo começo, uma nova identidade e um novo modo de vida para vencer aqui embaixo e no além. Em suma, é uma representação de mundo que dá a certeza de pertencer a algo maior que si mesmo: o grupo de eleitos encarregado por Deus de restabelecer a verdadeira religião e de reunificar a oumma (a comunidade dos fiéis) sob a égide do califado – a monarquia universal islâmica –, antes de se lançar à conquista do mundo e obter a salvação. Retraçar a gênese e o desenvolvimento dos principais afluentes da ideologia jihadista ajuda a compreender melhor seu poder de atração e sua eficácia, de Saint-Denis (França) a Karachi (Paquistão).

A exemplo de outras ideologias extremistas, o jihadismo finca suas raízes no desencantamento provocado pela Primeira Guerra Mundial. O desmantelamento do Império Otomano, a abolição do califado por Mustapha Kemal Ataturk, a dominação ocidental e a poderosa ascensão de novas formas de socialização criaram uma verdadeira desordem em alguns centros muçulmanos. Para sair de tal crise existencial, alguns militantes, letrados e ulemás (juristas e teólogos) viram no islã o único remédio. Diversos projetosmais ou menos bem-sucedidos apareceram também entre as duas guerras. O maisimportante entre eles é, sem dúvida, a Irmandade Muçulmana.

Inspirada na Associação Cristã de Moços, a confraria Irmandade Muçulmana surgiu no Egito por volta de 1928. Para seu fundador, Hassan al-Banna, o islã é uma ordem superior e total que deve reinar absoluta no espaço social muçulmano, pois é ao mesmo tempo “dogma e culto, pátria e nacionalidade, religião e Estado, espiritualidade e ação, Alcorão e espada”. Para atingir tal objetivo, projeta uma estratégia teológica: é preciso em primeiro lugar islamizar a sociedade pela base, passando por cima de todas as escolas jurídicas e teológicas, antes de tomar o poder e criar Estados islâmicos. Tais Estados, que garantem a supremacia da xaria (lei islâmica), se envolveriam aos poucos em um processo de integração por meio de programas de cooperação. Esse processo deve levar finalmente à abolição das fronteiras e à proclamação do califado.

O fundador da Irmandade Muçulmana nunca definiu os princípios e as estruturas do Estado islâmico que desejava instaurar. Sempre se contentou com slogans e fórmulas vazias, às vezes até contraditórias. Mas os traços encontrados aqui e ali em alguns de seus escritos, bem como sua ação no comando da confraria, demonstram bem que ele tinha uma queda pelo elitismo, pelo dirigismo e pelo autoritarismo. Al-Banna se declarava de maneira bem clara contra certos princípios democráticos, principalmente a liberdade, a separação entre política e religião, o multipartidarismo e a divisão dos poderes. Para enfrentar os desafios internos e externos, a oumma deve ser, segundo ele, dirigida por uma só lei (a xaria), por um só partido (a Irmandade Muçulmana) e por um só chefe (o califa).

Graças à simplicidade relativa de seu discurso e ao zelo de seus membros, a confraria aumentou consideravelmente sua base de apoio no Egito e em outras partes do mundo árabe. Não conseguiu, todavia, realizar seu principal objetivo: tomar o poder, condição indispensável para restabelecer a cidade de Deus e obter a salvação. Desde o fim dos anos 1940, esse fracasso impulsionou uma minoria decidida a adotar posições cada vezmais radicais, principalmente no tocante ao uso da violência. As coisas se aceleraram de maneira dramática durante a década seguinte, em razão da repressão sem precedentes conduzida pela junta militar recém-instalada no poder no Cairo.

Intelectualmente atormentado, Sayyed Qotb se uniu à confraria durante esse período de crise. Preso pelo presidente Gamal Abdel Nasser, operou uma reviravolta ideológica que teria consequências enormes no campo político-religioso árabe-muçulmano. Ele considerava, na verdade, que o mundo no qual vivia caíra na ignorância e na descrença (al-jahiliyya). Os verdadeiros fiéis, então ultraminoritários, deveriam realizar um êxodo (al-hijra), separando-se espiritual e fisicamente das sociedades ímpias. Após terem criado uma plataforma espiritual e temporal sólida, os escolhidos deveriam se lançar à conquista do mundo ímpio no âmbito de um jihad integral. Inspirado no indo-paquistanês Abul Ala Mawdudi, partidário fervoroso da ideia do califado, Qotb incitou os escolhidos a restabelecer a soberania absoluta de Deus (al-hakimiyya) mediante a instauração do Estado e da lei islâmicos para libertar os fiéis do materialismo ocidental. Essa cultura de enclave, que não é nova na história muçulmana, tornou-se muito rapidamente o pilar político do jihadismo contemporâneo.


Apesar de sua popularidade e de sua adoção por certo número de grupos radicais a partir da década de 1960, as ideias de Al-Banna e de Qotb foram freadas em sua difusão por um obstáculo estrutural: seus autores não eram ulemás depositários de uma tradição secular, mas reles intelectuais e militantes islamitas, uma categoria que ainda não encontrou lugar no campo político-religioso. Ao longo dos anos 1960 e 1970, diversos grupos jihadistas (Shabab Muhammad, Al-Jihad e Al-Takfir wal-Hijra) se esforçaram para remediar esse problema utilizando insistentemente referências clássicas, em especial os escritos de Ibn Taymiyya, jurista-teólogo do século XIII, e de seu discípulo Ibn Qayyim al-Jawziyya. Em vão.

Em 1979, a invasão soviética do Afeganistão possibilitou ao jihadismo dotar-se de uma doutrina teológica e jurídica bem estabelecida: o wahabismo. Graças aos petrodólares da Arábia Saudita, a tradição pôde se impor no campo islâmico como uma nova ortodoxia. Nascido durante a segunda metade do século XVIII na Arábia Central, o wahabismo é uma derivação do hanbalismo, uma das quatro grandes escolas jurídicas do sunismo. Pregador intransigente, seu fundador, Mohammed ibn Abdelwahhab (1703-1792), não recuava diante de nada para impor o que considerava a única verdadeira religião, aquela do Profeta e dos piedosos ancestrais, al-salaf al-salih, de onde surgiu o termo “salafismo”, outra denominação dessa tradição. Em 1744, ele aliou-se aos Saud para erguer, com base em sua doutrina, uma entidade política: o primeiro Estado saudita, instalado em 1818.

Seguido cegamente por seus discípulos, Ibn Abdelwahhab garantia que a única via possível para a salvação era a restauração da religião “pura”. Para tanto, seria necessário (re)descobrir o conceito fundamental do islã: a unicidade divina – al-tawhid, origem do nome de muitos movimentos jihadistas. Essa unicidade só pode ser realizada com uma condição: a observação estrita da ortodoxia e da ortopraxia, conforme a doutrina hanbalita. Todos aqueles que não aderem a esse dogma são classificados como hipócritas, desgarrados, hereges ou infiéis. Muitas doutrinas e práticas do sufismo, tais como o culto dos santos, as peregrinações extracanônicas e as práticas divinatórias, são associadas a formas de idolatria que devem ser combatidas por todos os meios. Do mesmo modo, indivíduos e governos que recorrem a leis consideradas não islâmicas, principalmente as leis positivas, são declarados apóstatas.

Tornar-se e permanecer um verdadeiro monoteísta supõe aplicar estritamente as percepções divinas a todos os âmbitos da vida. Para atingir tal objetivo, os wahabitas preconizam uma interpretação rigorosa dos textos sagrados. A xaria e, principalmente, os castigos corporais devem, segundo eles, ser aplicados à risca.

Para traçar verdadeiras fronteiras, simbólicas e reais, entre a religião autêntica e as falsas, os defensores do wahabismo desenvolveram o princípio al-wala wal-bara (a fidelidade e a ruptura). O fiel deve fidelidade e lealdade absolutas a todos os outros membros da comunidade. Por outro lado, as relações com os infiéis se limitam teoricamente à conversão, à submissão ou à guerra. Por essa lógica, os muçulmanos que habitam territórios ímpios devem, cedo ou tarde, realizar uma hégira, um êxodo, em direção à casado islã para se abastecer de forças sagradas antes de partir novamente para o jihad.


Armados do projeto de Al-Banna, do mapa de Qotb, da ortodoxia wahabita e da vitória contra os soviéticos, os jihadistas creem deter enfim a fórmula ideológica ideal para revitalizar o califado e a era de ouro do islã. Conforme atestam bem as profecias de fé que circulam na internet, principalmente aquela publicada pelo chefe da Organização do Estado Islâmico (OEI) do Iraque, Abou Omar al-Baghdadi, em 2007, essa ideologia evoluiu muito pouco durante as últimas décadas. As únicas novidades a destacar são a subida ao poder do discurso antixiita – em razão dos contextos saudita, iraquiano e sírio –, o desenvolvimento de escritos que legitimam todas as formas de violência e os relatos messiânicos.

Para conseguir fazer triunfar essa que creem ser a verdadeira religião, os jihadistas elaboram desde o começo dos anos 1990 diversas estratégias ao mesmo tempo concorrentes e complementares. A Al-Qaeda baseia sua existência na ideia de que a oumma é alvo de incessantes agressões internas e externas. Os muçulmanos do mundo inteiro têm a obrigação, segundo ela, de prestar socorro a seus correligionários em apuros. Tal solidariedade orgânica se expressa por meio de um jihad global, ora contra as grandes potências, ora contra os regimes árabe-muçulmanos que as apoiam. O objetivo final é expulsar tais potências dos domínios do islã, converter os regimes considerados apóstatas e restabelecer o califado. Considerando-se a vanguarda da comunidade dos fiéis, os membros da Al-Qaeda querem fazer do Afeganistão o lar de uma nova epopeia. Em 1998, Osama bin Laden e seus imediatos também juraram lealdade ao líder dos talibãs, o mulá Omar, como comandante dos fiéis, declarando o jihad às potências ocidentais. Uma série de grandes atentados se seguiu, entre eles o de 11 de setembro de 2001.

Levando em conta as consequências dos fracassos da Al-Qaeda, a OEI adotou uma ação “glocal”, ou seja, desenvolve sua capacidade de pensar globalmente e agir localmente. Os dirigentes da organização, que se consideram por sua vez os novos escolhidos, preferiram de imediato dotar-se de uma plataforma no próprio centro do mundo árabe-muçulmano e garantir sua autonomia financeira antes de enviar seus soldados para atacar o mundo. Para isso, seguiram um plano em três etapas, publicado entre 2002 e 2004: “Sobre a administração da selvageria: a etapa mais crítica pela qual a comunidade de fiéis passará”. Em termos mais simples e diretos, esse opúsculo explica como os jihadistas podem aproveitar os acontecimentos e as circunstâncias, no plano local ou internacional, para dominar um território. Uma vez conquistado, este pode tornar-se uma plataforma não somente mediante o uso de uma violência extrema e de uma propaganda implacável, mas também se inspirando na arte da guerra e no know-how administrativo ocidentais. O sucesso parcial dessa estratégia e a proclamação de um “califado” em junho de 2014 foram replicados no mundo muçulmano e em outras partes do planeta, no Sinai, na Líbia, no Sahel, na Tunísia, na Arábia Saudita e na França... 

Nabil Mouline
*Nabil Mouline é pesquisador no Centre d’études interdisciplinaires des faits religieux (CEIFR) na École des hautes études en sciences sociales (EHESS). É autor, entre outras, da obra Les clercs de l’islam. Autorité religieuse et pouvoir politique en Arabie Saoudite (XVIIIe-XXIe siècle)[Os clérigos do islã. Autoridade religiosa e poder político na Arábia Saudita (séculos XVIII a XXI)], Presses Universitaires de France (PUF),PARIS, 2011

Ilustração: João Montanaro
Le Monde Diplomatique Brasil