sábado, 28 de novembro de 2015

Em 1991, por trás do slogan "morte zero", a hecatombe


O exame dos dados referentes às vítimas da guerra em 1991 mostra que as “leis da guerra” não levaram em conta as mudanças na tecnologia militar. A regra da “proporcionalidade” exige que, para proteger os civis, as operações militares tenham o cuidado de poupar a população e os alvos civis
por Betty Mindlin


Em 1991, o tratamento dado pela mídia ocidental à Guerra do Golfo transmitiu a impressão de uma guerra limpa. Na época, o Ministério da Defesa norte-americano oferecia aos jornalistas boletins que pareciam shows. Para quem não conheceu a Guerra do Vietnã, as demonstrações de Colin Powell, então chefe de Estado-maior das Forças Armadas norte-americanas, e Dick Cheney, então ministro da Defesa, chegavam quase a evocar aquelas brincadeiras de escola em que os meninos exibiam seus brinquedos militares.1

Menos mostrado foi o destino do povo iraquiano após a guerra. A maioria dos jornalistas tinha dificuldade em tornar “assunto” a miserável sorte dos habitantes mais vulneráveis do país. Principalmente quando se tratava de crianças e idosos sofrendo de “taxa de mortalidade excessiva”. Nossa investigação nos levou a “desmembrar” o número total de vítimas iraquianas em cinco categorias: civis vitimados pelos efeitos diretos da guerra; por seus efeitos indiretos; por revoltas posteriores ao conflito; militares diretamente vitimados pela guerra; e aqueles que pereceram em decorrência de revoltas que se seguiram ao conflito.

A primeira categoria é a que vem à mente em primeiro lugar. Ela inclui mortes ocorridas quando as bombas erram o alvo, quando os atingem mas matam civis, quando civis são pegos no fogo cruzado etc. Com base em testemunhos diretos e dados iraquianos corroborados por testemunhos diretos, estimamos que cerca de 3.500 civis morreram dessa maneira. Se a contagem das vítimas parasse aí, o mito da guerra “limpa” seria maisfácil de ser sustentado.

Mas, antes da guerra de 1991, muitos estudos indicavam que a mortalidade de crianças e recém-nascidos tinha caído brutalmente na década anterior. Durante o verão [do Hemisfério Norte] de 1991, pouco antes da derrota das Forças Armadas do Iraque, uma equipe de pesquisadores questionou mulheres iraquianas em idade fértil sobre o destino das crianças nascidas depois de 1985. Elas indicaram a data de nascimento de cada criança e, quando era o caso, a da morte. A análise desses dados levou a uma taxa de mortalidade infantil, em 1991, de 93 crianças por mil, em vez da taxa de 37 por mil esperada caso se mantivesse a tendência anterior. A diferença entre as cifras dá um número de 111 mil “mortes em excesso” em 1991, ligadas aos efeitos indiretos da guerra, os quais incluem as perturbações causadas à sociedade e à economia do país.

Os especialistas militares permitem que façamos uma estimativa do número de mortes nas outras categorias. Entre 49 mil e 63 mil soldados e oficiais iraquianos foram mortos de janeiro a março de 1991 (o bombardeio ao Iraque começou em 17 de janeiro de 1991, e o cessar-fogo foi alcançado em 3 de março). Cinco mil militares e cerca de 30 mil civis (três quartos dos quais tinham tomado parte no combate contra o regime de Saddam Hussein) foram vítima das revoltas internas que se seguiram à vitória dos exércitos da coalizão.

É evidente que o número de mortes decorrentes dos efeitos indiretos das operações militares – sanitários, por exemplo – foi muito superior ao das outras categorias. E é após a guerra que essas vítimas se tornam as mais numerosas. Cerca de 70 mil mortes seriam de crianças com menos de 15 anos.

Como explicar tais mortes? A destruição da infraestrutura do país contribuiu enormemente para o aumento da mortalidade. A morte de civis após um conflito armado deve-se a mecanismos quase idênticos àqueles que causam mortes após um terremoto, inundação ou outro desastre natural. Em sua vida cotidiana, a população conta com recursos de infraestrutura que lhe permitem dispor de água potável, eletricidade, aquecimento, alimentação e um sistema operacional de distribuição de medicamentos. Quando essas infraestruturas são destruídas, a vida dos habitantes fica gravemente ameaçada.

O exame dos dados referentes às vítimas da guerra em 1991 mostra que as “leis da guerra” não levaram em conta as mudanças na tecnologia militar. A regra da “proporcionalidade” exige que, para proteger os civis, as operações militares tenham o cuidado de poupar a população e os alvos civis. Aqueles que preparam um ataque armado devem, portanto, tomar todas as medidas necessárias na escolha dos meios e métodos para minimizar o número de civis mortos e feridos, e evitar danos aos equipamentos que lhes são indispensáveis. Sobretudo quando esses “danos colaterais” parecem desproporcionais em relação à vantagem militar direta que o exército pretende obter.

Essa regra costuma aplicar-se às vítimas civis diretamente causadas pelas operações de guerra. Porém, quando as guerras são conduzidas de modo que o número de vítimas nessa categoria pareça limitado durante o período dos combates armados, ao preço de sofrerem uma verdadeira explosão após o fim do conflito, tal regra deve ser questionada. Assim como o “cálculo” – comparar a vantagem militar adquirida ao número de mortes de civis, diretas e indiretas, relacionadas aos meios utilizados.2

Além disso, as sanções econômicas punem os civis de tal maneira que constituem uma extensão do conceito de guerra, devendo ser também apreciadas dessa forma. De qualquer modo, todos sabemos que, quando a diplomacia falha, são os civis que sofrem.



Betty Mindlin Antropóloga, é autora de Diários da floresta, entre outros livros. Faz parte do Conselho Editorial de Le Monde Diplomatique Brasil.


1 Ler Ignacio Ramonet, “La télé loin des fronts” [A TV longe dos fronts]; Serge Halimi, “Des médias en tenue camouflée” [A mídia de uniforme camuflado]; e John Berger, “Guerre et mensonges” [Guerra e mentiras], Le Monde Diplomatique, fev., mar. e abr. 1991, respectivamente.
2 Ler René Dumont, “La population irakienne punie par l’embargo” [População iraquiana punida pelo embargo]; e Alain Gresh, “Muette agonie de l’Irak” [Agonia muda no Iraque], Le Monde Diplomatique, dez. 1991 e jul. 1999, respectivamente
Le Monde Diplomatique Brasil

Antropologia, arma militar

Em um artigo do dia 5 de outubro de 2005, o New York Times elogiou o contingente de antropólogos engajados em uma grande operação para reduzir os ataques contra soldados norte-americanos e afegãos
por William O. Beeman


Em operação há vários anos, o programa Sistemas de Terreno Humano (Human Terrain Systems – HTS) foi consideravelmente reforçado pelo Exército norte-americano em setembro de 2007.1 Antropólogos foram recrutados e diretamente integrados (embedded) em unidades de combate nas brigadas e divisões no Iraque e Afeganistão. Eles foram encarregados de aconselhar os comandantes sobre as ações culturais a serem realizadas em campo. Gerenciado pela empresa privada BAE Systems,2 o HTS concentra-se em fornecer informações aos militares confrontados com situações potencialmente violentas, evitando que interpretem erroneamente as ações da população local e permitindo-lhes analisar as situações nas quais se encontram.

Em um artigo do dia 5 de outubro de 2005, o New York Times elogiou o contingente de antropólogos engajados em uma grande operação para reduzir os ataques contra soldados norte-americanos e afegãos. Tendo identificado um grande número de viúvas na área-alvo, os especialistas presumiram que os jovens a elas aparentados poderiam sentir-se obrigados a dar-lhes apoio material, unindo-se assim, por necessidade econômica, aos insurgentes que remuneram os combatentes. Desse modo, a aplicação de um programa de formação profissional para essas viúvas teria ajudado a reduzir o número de ataques.

O programa HTS preocupa muitos antropólogos, até porque remete a tristes precedentes. Lançado em 1965, o projeto Camelot, de curta duração, recrutou antropólogos para avaliar as causas culturais da violência. O campo de testes escolhido foi o Chile, na época em que a Agência Central de Inteligência (CIA) tentava impedir que o socialista Salvador Allende chegasse ao poder.

O segundo projeto, sob o nome de Apoio a Operações Civis e Desenvolvimento Revolucionário (Civil Operations and Revolutionary Development Support– Cords), tinha a missão de coordenar programas civis e militares de “pacificação” norte-americanos no Vietnã. Ele visava estabelecer um “mapeamento humano” do terreno, para identificar – e, portanto, definir como alvos potenciais – indivíduos e grupos suspeitos de apoiar os comunistas vietnamitas. Sabe-se com certeza que a pesquisa antropológica foi utilizada durante essa operação.

Assim como os médicos acatam o juramento de Hipócrates, os antropólogos possuem um código de ética que afirma que suas atividades não devem de forma alguma prejudicar as populações estudadas, e que estas devem “consentir, com conhecimento de causa”, participando das atividades de pesquisa. Essa condição é obviamente impossível em condições de combate. Muitas pessoas ao redor do mundo já consideram tais especialistas como espiões, mesmo quando realizam pesquisas em uma situação normal, o que atrapalha sua missão científica. Todas essas razões explicam por que a operação HTS torna-se imediatamente o centro das atenções da categoria.

Em setembro de 2007, um grupo de universitários formou a Rede de Antropólogos Conscientes (Network of Concerned Anthropologists),3 inspirada em físicos que se opunham ao programa “Guerra nas Estrelas”, sistema de defesa antimíssil norte-americano lançado em 1983 pelo então presidente Ronald Reagan. A rede escreveu um projeto de “compromisso de não participação na contrainsurreição”. Um de seus fundadores, David Price, da St. Martin University de Lacey (Washington), explica: “Não somos todos necessariamente contra a ideia de trabalhar com o Exército, mas nos opomos a tudo que se relaciona à contrainsurreição ou que constitua uma violação dos padrões éticos da pesquisa. Solicitamos que nossos colegas proclamem que não querem utilizar a antropologia para esse fim”.4

Em outubro de 2007, o Conselho Executivo da Associação Norte-Americana de Antropologia publicou uma vigorosa declaração que não proibia explicitamente a participação no projeto HTS, mas alertava todos os seus membros contra a possível violação do código de ética da profissão que essa participação poderia acarretar.

Na reunião anual da associação em Washington, em novembro de 2007, essas atividades estavam no centro de uma controvérsia que continua gerando polêmica. Em uma sessão intitulada “O Império responde: perspectivas dos militares e serviços de inteligência norte-americanos sobre suas relações com a antropologia”,5 defensores e opositores do programa enfrentaram-se diante de uma enorme plateia. Participantes que haviam colaborado com o Exército tentaram convencer os colegas do efeito salutar de seu trabalho, que teria ajudado a transformar as atitudes dos militares e torná-los mais sensíveis às diferenças culturais. Os céticos avaliaram que aqueles que cooperaram com o Exército são ingênuos a respeito do uso de suas pesquisas.

Essa viva controvérsia desembocou numa resolução que, se ratificada por todos, poderá reforçar o código de ética e banir qualquer atividade de pesquisa secreta para serviços de inteligência. Um dos principais defensores da cooperação com o Exército é a doutora Montgomery McFate, antropóloga da Universidade de Yale e membro do Institute for Peace dos Estados Unidos. Em um seminário realizado no dia 10 de maio de 2007, Montgomery apresentou um plano que contribuiu para o desenvolvimento do projeto HTS. Segundo ela, o Exército gasta pouco com a pesquisa em ciências sociais, a qual poderia revelar-se crucial para o sucesso das operações militares. Para reparar essa grande lacuna em termos de conhecimento, ela recomendou a criação de um vasto programa de pesquisa em ciências sociais, que implicaria na construção de um banco de dados socioculturais, com o recrutamento de jovens analistas culturais nos serviços governamentais, e a fundação de um escritório central de conhecimento cultural.

Para a categoria, nenhum dos esforços de pesquisa defendidos por Montgomery traz dificuldades. No entanto, quando o conhecimento é utilizado como arma no campo de batalha, a situação torna-se mais problemática. É precisamente essa fina linha entre o bom e o mau uso da antropologia que continua a levantar questões.


William O. Beeman
Professor e presidente da Faculdade de Antropologia da Universidade de Minnesota, Minneapolis. Também é presidente da seção Oriente Médio da Associação Norte-americana de antropologia


1 Segundo um artigo publicado no site da British Broadcasting Corporation (BBC), “US army enlists anthropologists” [Exército norte-
-americano recruta antropólogos], 16 out. 2007, milhões de dólares foram disponibilizados para o projeto. Um antropólogo enviado para uma missão em campo equivaleria a US$ 400 mil por ano.
2 A empresa foi criada pela British Aerospace e Marconi Electronic Systems.
3 Muitas informações interessantes podem ser encontradas no site da organização: <http://sites.google.com/site/concernedanthropologists>.
4 Entrevista para o programa Democracy now [Democracia agora], no dia 13 de dezembro de 2007.
5 “The Empire speaks back: US military and intelligence organization’s perspectives on engagement with anthropology”.
LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Pacto contra o rentismo

Claudius

por Silvio Caccia Bava


Não há “erros” praticados na condução do ajuste. É a defesa dos interesses rentistas que define a política, em oposição a um amplo leque de atores que sofrem com essa estratégia.

A estratégia tem vários componentes: capturar o Estado e submetê-lo a seu estrito controle, apropriar-se da receita pública para proveito próprio, baixar o custo da força de trabalho, privatizar bens públicos, cortar políticas sociais, transformar a questão social numa questão de polícia.

Na crise, as grandes empresas aplicam no mercado financeiro para garantir seus lucros, mas as pessoas passam a ter menos dinheiro para consumir, o aumento do desemprego rebaixa os salários e a pobreza retoma seu espaço no lar das maiorias. Com isso, o mercado se contrai e o faturamento dos comerciantes e prestadores de serviços cai. As pequenas e médias empresas se veem em dificuldades. Evidentemente, há muita gente descontente, e o grande vilão são os juros. 

Contra a alta dos juros e em favor da manutenção do emprego, da ampliação da capacidade de consumo e da dinamização do mercado interno, podemos observar manifestações recentes de centrais sindicais, da Fiesp, da Abimaq, entre outras importantes entidades dos trabalhadores e empresariais.

É preciso superar a interdição do debate sobre as alternativas de desenvolvimento e trazer para o espaço público as análises e propostas que podem enfrentar a crise de uma perspectiva que garanta a retomada do crescimento com inclusão social e sustentabilidade ambiental.

Há questões que a conjuntura estimula a pensar. É possível estabelecer pactos sociais pontuais para enfrentar as políticas macroeconômicas do rentismo? O impacto do ajuste, que começa a ser mais intenso agora, abre uma oportunidade ímpar de negociações e articulações para organizar a resistência e a reversão dessas políticas. 

Há, no entanto, uma condição essencial: a reapropriação do espaço público. Os cidadãos, e suas representações coletivas, precisam vir a público debater suas ideias, suas posições. É o contrário do panelaço, que interdita a fala. É preciso assegurar aos cidadãos brasileiros que há estratégias alternativas para superarmos a presente crise, sem que a conta recaia unicamente nas costas dos mais pobres.

Sabemos que a democracia está em risco, violada em todos os poderes da República, violada no respeito mútuo que a igualdade de direitos deveria assegurar entre os cidadãos. Caminhamos para a radicalização, a violência, regimes autoritários.

Essa tendência, no entanto, pode ser revertida. É uma tarefa para a cidadania ativa. No mundo, e aqui mesmo, assistimos recentemente a enormes manifestações de rua. No nosso caso, desde junho de 2013, e mesmo antes, se considerarmos o número crescente de greves e manifestações dos movimentos sociais, os cidadãos estão se reapropriando do espaço público. A particularidade deste momento é a presença das classes médias nas ruas. Há uma disputa do espaço público e das narrativas que explicam a crise e apontam seus responsáveis.

Mesmo com toda a mídia contra, as forças sociais de resistência ao ajuste ainda têm espaço de expressão pública e podem conquistar espaços mais amplos. Agregando distintos setores sociais, a combinação de seus esforços pode ampliar a adesão social ao movimento de resistência. Porque é disto que se trata: disputar na sociedade as alternativas de desenvolvimento. Não sobraram instituições políticas capazes de processar os conflitos sociais.

A democracia e suas instituições serão revigoradas apenas por pressão social e por mudanças nas políticas macroeconômicas que atendam aos interesses das maiorias. Neste momento trata-se de politizar o social e socializar a política. Trata-se de realizar um enorme esforço de esclarecer a cidadania, organizar debates públicos, apresentar e debater propostas de saída para a crise, para construir um Brasil melhor para todos. 

Já há uma trajetória de acúmulos nos debates e negociações sobre a possibilidade de pactos sociais que envolvam atores interessados na promoção do desenvolvimento sustentável com inclusão social. Pouco tempo atrás, depois de um ano de debates, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social apontou para a possibilidade efetiva de estabelecer um mínimo denominador comum, um conjunto pequeno de proposições que alinham interesses e atores diversos num compromisso de ação para superarmos a presente crise.

A construção de um pacto contra o rentismo vai se tecendo. A recente declaração conjunta de todas as centrais sindicais em defesa do emprego e da democracia é um importante passo nesse sentido. Mas o acontecimento mais importante na perspectiva de articular as forças de resistência ao ajuste é o lançamento, neste mês, da Frente Brasil Popular. Passam a agir em conjunto movimentos, entidades, associações, sindicatos e partidos, fundamentalmente para lutar contra o rentismo, ampliar o espaço público e debater com a sociedade a encruzilhada do nosso desenvolvimento.

Há uma necessidade sentida por toda parte, nos bares, nos ônibus, nas conversas, nesta particular conjuntura, de um debate nacional sobre o futuro do país. Como superar a crise? Qual desenvolvimento queremos? Como chegar lá? Criar novos espaços para abrigar essas preocupações e debatê-las pode aglutinar distintas forças sociais. Pode mesmo criar condições para que se convoque um Fórum de Desenvolvimento e se convidem entidades patronais para o diálogo.

O diálogo e o debate são o caminho para o resgate da democracia, para a negociação de novos pactos sociais, para sairmos do estrangulamento econômico que o ajuste nos impõe. Para isso a sociedade precisa se dotar de instrumentos e espaços para o diálogo. Há exemplos, como as “mesas de concertación” no Peru, de construção de mesas de diálogo nacionais e regionais com a participação de todas as classes sociais, para negociar o modelo de desenvolvimento e questões específicas. O futuro se decide agora.

Le Monde Diplomatique Brasil

A mente da tia Millie

A morte cerebral significa que experiências subjetivas são neuroquímicas


Michael Shermer
Ilustração por Brian Cairns

“Onde está o vermelho em seu cérebro?”.A pergunta foi feita por Deepak Chopra em seu simpósio Sages and Scientists, em Carlsbad, na Califórnia, em 3 de março. Um exército de apresentadores argumentou que a falta de uma teoria neurocientífica completa que explique como a atividade neural se traduz em experiências conscientes (como “vermelhidão”) significa que uma abordagem fisicalista é inadequada ou errada. “A ideia de que experiências subjetivas resultam da atividade eletroquímica permanece uma hipótese”, escreveu Chopra por e-mail. “É tão especulativa quanto a ideia de que a consciência é fundamental, leva à atividade cerebral e cria propriedades e objetos do mundo material”.

“Onde está a mente da tia Millie quando seu cérebro morre devido a Alzheimer?”, perguntei a Chopra. “A tia Millie era um padrão de comportamento impermanente do Universo e retornou ao potencial de onde surgiu”, respondeu. “Na filosofia das tradições orientais, o ego é uma ilusão e o objetivo da iluminação é transcender a uma identidade mais universal não-local, não-material”.

A hipótese de que o cérebro cria a consciência, porém, tem muito mais evidências a seu favor do que a hipótese de que a consciência cria o cérebro. Danos ao giro fusiforme do lobo temporal, por exemplo, provocam cegueira facial, e a estimulação dessa mesma área faz as pessoas verem rostos espontaneamente. Danos provocados por AVCs à região do córtex visual chamada V1 levam à perda de percepção visual consciente. Mudanças na experiência consciente podem ser medidas diretamente por RM funcional, eletroencefalografia e registros de neurônios isolados. Neurocientistas conseguem prever escolhas humanas a partir da atividade cerebral antes que o próprio sujeito esteja consciente delas. Usando apenas varreduras cerebrais, eles foram até capazes de reconstruir, no computador, o que alguém vê.

Milhares de experimentos confirmam a hipótese de que processos neuroquímicos produzem experiências subjetivas. O fato de neurocientistas não concordarem sobre qual teoria fisicalista descreve melhor a mente não significa que a hipótese de que a consciência cria a matéria tenha o mesmo peso. Em sua defesa, Chopra me enviou um artigo de 2008, publicado na Mind and Matter, do cientista cognitivo da University of California, Irvine, Donald D. Hoffman: Conscious Realism and the Mind-Body Problem (“Realismo Consciente e o Problema Mente-Corpo”, literalmente). O realismo consciente “afirma que o mundo objetivo, i.e., o mundo cuja existência não depende das percepções de um observador em particular, consiste inteiramente de agentes conscientes”. A consciência é fundamental para o Cosmos e produz partículas e campos. “Ela não é tardia na história evolutiva do Universo, surgindo de interações complexas de matéria e campos inconscientes”, escreve Hoffman. “A consciência vem primeiro; a matéria e os campos é que dependem dela para existir”. 

Onde estão as evidências mostrando que a consciência é fundamental ao Cosmo? Aqui Hoffman se volta para como observadores humanos “constroem as formas visuais, cores, texturas e movimentos dos objetos”. Nossos sentidos não constroem uma aproximação da realidade física em nosso cérebro, argumenta ele. Em vez disso, funcionam como um sistema de interface gráfica de usuário que tem pouca ou nenhuma semelhança com o que realmente acontece no interior de um computador. Na visão de Hoffman, nossos sentidos trabalham para construir a realidade, não reconstruí-la. Por fim, isso “não requer a hipótese de objetos físicos de existência independente”.

Como a consciência faz a matéria se materializar? Ele não diz. Onde (e como) a consciência existia antes de haver matéria? Não sabemos. Até onde posso ver, toda a evidência aponta na direção de cérebros gerando mentes, mas nenhuma evidência indica causalidade inversa. Toda essa linha de raciocínio parece, na verdade, ser baseada em algo semelhante ao argumento do “Deus das lacunas”, onde lacunas fisicalistas são preenchidas por agentes não-fisicalistas, sejam divindades oniscientes ou agentes conscientes. 

Ninguém nega que a consciência é um problema difícil. Mas antes de a elevarmos ao nível de agente independente capaz de criar sua própria realidade, vamos dar mais tempo às hipóteses de que cérebros criam mentes. Porque o que sabemos de fato é que a consciência mensurável morre quando o cérebro morre e, até prova em contrário, a hipótese padrão deve ser a de que cérebros geram consciências. Existo, logo penso.
Scientific American Brasil

domingo, 15 de novembro de 2015

A Teoria Perfeita

Livro conta a história da relatividade geral, e o que torna algo uma ciência 

NRAO

Até o desenvolvimento da radioastronomia – exemplificada aqui pelo telescópio Very Large Array no Novo México – a relatividade geral era considerada mais especulação que fato. (Imagem: NRAO)

Por Ashutosh Jogalekar

O livro de Pedro Ferreira,The Perfect Theory: A Century of Geniuses and the Battle over General Relativity (“A Teoria Perfeita: Um Século de Gênios e a Batalha pela Relatividade Geral”, em tradução literal, sem edição em português), nos conta o que outras pessoas fizeram com a teoria da relatividade geral de Einstein depois que ele a desenvolveu. Ainda que um capítulo inteiro seja dedicado aos árduos esforços de Einstein para aprender a geometria não-Riemaniana e para construir as equações de campo que definem a teoria, o livro realmente decola depois de 1917, quando vários homens e mulheres descobriram as incríveis implicações dessas equações. O livro é uma leitura rápida e faz um ótimo trabalho retratando personalidades diversas e descobertas empolgantes reveladas pela relatividade geral.

Em 1919 a teoria já estava bem estabelecida como parte da empreitada científica, especialmente após ter ditado o valor correto do periélio de Mercúrio e previsto a curvatura da luz estelar observada por Arthur Eddington, uma descoberta que projetou o nome de Einstein para as manchetes de todos os principais jornais do mundo. Eddington foi o herdeiro de Einstein, dominando profundamente a teoria e compreendendo suas implicações para a estrutura estelar. Ironicamente, ele não ousou levar essas implicações até sua conclusão lógica. Essa tarefa foi deixada para um jovem astrofísico indiano chamado Subrahmanyan Chandrasekhar, que abriu o caminho para a descoberta de buracos negros ao considerar o que acontece quando estrelas ficam sem combustível e colapsam sob a contração gravitacional. A repreensão de Eddington às descobertas de Chandrasekhar ficou famosa, e revelou que ele era muito parecido com Einstein: um revolucionário na juventude e um reacionário na maturidade.

A história dos buracos negros é uma das principais linhas seguidas pelo livro. As ideias de Chandrasekhar foram desenvolvidas por Lev Landau, Fritz Zwicky e Robert Oppenheimer na década de 30. A história de Oppenheimer é especialmente interessante, já que foi ele quem descobriu teoricamente os buracos negros, mas que depois se dissociou completamente deles, não demonstrando qualquer interesse na relatividade geral até o fim de sua vida. Na verdade, Oppenheimer via a relatividade como a vasta maioria dos físicos que foram pegos nas revoluções nuclear e quântica das décadas de 30 e 40. A mecânica quântica e a física de partículas eram as novas fronteiras; a relatividade era só especulação.

Foi o eminente físico de Princeton, John Wheeler, quem continuou o trabalho de Oppenheimer. Wheeler realmente é o pai da relatividade moderna, já que foi ele quem reacendeu o interesse pelo assunto nas décadas de 50 e 60. Muitos de seus alunos, como Jacob Bekenstein e Kip Thorne, se tornaram proeminentesna área. Na Grã Bretanha essa área veio à luz com Dennis Sciama, e seus alunos Roger Penrose e Stephen Hawking abriram o caminho para a compreensão de singularidades e do Big Bang. Hawking, especialmente, criou uma ligação muito importante entre informação, relatividade, termodinâmica e mecânica quântica por meio de sua exploração do que atualmente chamamos de “paradoxo da informação em buracos negros”.

O trabalho de Hawking com singularidades se conecta à segunda linha principal do livro, dessa vez envolvendo as aplicações da relatividade geral ao Universo inteiro. A história começa logo após Einstein desenvolver seu trabalho, quando Alexander Friedmann, um piloto russo de bombardeiro, e Georges Lemaître, um padre belga, descobriram que uma das soluções das equações seria um Universo em expansão. Em um famoso momento que Einstein chamou de “o maior deslize” de sua vida, o físico encontrou essa solução mas, com base nas observações de um Universo localmente estático, aplicou um fator de correção – uma ‘constante cosmológica’ – para deter a expansão,e isso acabou tendo grande importância quase oito décadas mais tarde. A história de Lemaître e Friedmann conduz logicamente à de Edwin Hubble que, em 1929, observou o desvio para o vermelho de galáxias, assim inaugurando uma das maiores eras na exploração do Cosmo. Essa era culminou na descoberta da matéria e energia escuras, e na transformação da cosmologia em uma ciência exata, e tudo isso abriu fronteiras com que Einstein sequer sonhava. E Ferreira espera que essas belas equações produzam muito mais surpresas no futuro.

Ferreira se dedica muito a descrever essas duas linhas principais. Um dos aspectos mais importantes do desenvolvimento da relatividade foi o impulso que a teoria recebeu com as observações experimentais de objetos distantes feitas pelos rádio-telescópios de Martin Ryle, Jocelyn Bell e outros. De fato, o livro destaca que, sem essas observações, a relatividade continuaria a ser considerada uma brincadeira matemática no pior dos casos, e uma ciência especulativa no melhor deles. A fixação da relatividade ao mundo real por meio da descoberta de quasares, pulsares, estrelas de nêutrons e buracos negros torna bastante clara a importância fundamental de evidências experimentais para qualquer teoria. Pessoalmente, eu teria apreciado se Ferreira também tivesse considerado algumas outras evidências para a relatividade geral, como a observação do efeito Lense-Thirring [NOTA: No original frame-dragging, qu pode ser traduzido como arrasto de estrutura, arrasto estrutural, arrasto referencial, arrasto de referenciais entre outros) pela Sonda Gravitacional B, uma maravilha técnica e um fenômeno de cair o queixo em medidas precisas, se é que já existiu um.

A última parte do livro se dedica ao desafio das últimas quatro décadas para combinar a relatividade geral e a mecânica quântica, um esforço que foi iniciado por Wheeler e seu aluno Bryce DeWitt na década de 60. As mesmas técnicas de teoria de campo que levaram a sucessos tão espetaculares na física de partículas – culminando no Modelo Padrão – foram um fracasso abismal quando aplicadas à relatividade. Uma das possíveis saídas para esse problema é a teoria das cordas, que tem a virtude de fazer a gravidade emergir naturalmente do quadro teórico. Outra teoria promissora é a gravidade quântica em loop. O problema com a teoria das cordas, que já é bem conhecido atualmente, é que ela não faz previsões testáveis e seu universo de soluções é tão vasto que qualquer coisa pode ser acomodada em seu grandes braços. Na ciência, uma teoria que pode explicar tudo normalmente é considerada uma teoria que não explica nada.

Uma das coisas que me marcou foi a importância de experimentos e observações para levar uma teoria do reino da especulação para o da realidade prática. Vale a pena comparar o progresso da mecânica quântica, da relatividade geral e da teoria das cordas nesse contexto. A mecânica quântica foi desenvolvida na década de 1920, e imediatamente explicou dezenas de fatos experimentais anteriormente confusos. Seu sucesso só cresceu na década de 30 e 40, quando ela foi aplicada à física de estado sólido, à química e à física nuclear, sempre amplamente apoiada por experimentos. Os problemas filosóficos da teoria – que ainda nos dão trabalho – não a afetaram devido a seu grande sucesso experimental. Em contraste, a relatividade geral foi desenvolvida cerca de 10 anos antes. Por volta de 1940, ela tinha duas grandes previsões para lhe dar crédito: a curvatura da luz estelar e a expansão do Universo. Mas até o fim dos anos 50 ela não tinha se tornado parte da física dominante e era considerada mais matemática que física, principalmente porque lhe faltavam evidências experimentais. Como mencionado acima, foi o desenvolvimento da radioastronomia que deu solo firme a essa teoria.

Assim, a mecânica quântica não precisou de tempo nenhum para se tornar respeitável, enquanto a relatividade precisou de quase 40 anos, mesmo com duas observações experimentais incríveis de suas previsões. A grande diferença foi a quantidade de evidências experimentais: numerosas no caso da mecânica quântica e escassas no caso da relatividade. Se comparada a essas duas, a teoria das cordas já existe há quase 40 anos e ainda não existe nenhuma evidência experimental não-ambígua em seu favor. Do ponto de vista puramente histórico, isso pode indicar que talvez estejamos no caminho errado. Existe um motivo para Feynman ter dito que o único teste verdadeiro de uma teoria científica é a experimentação.
Scientific American Brasil

Assédio é comum em trabalhos científicos de campo

Mais de 60% de jovens cientistas experimentaram episódios constrangedores

Shutterstock/ ChameleonsEye
Pesquisa com 142 homens e 516 mulheres em diversas disciplinas científicas constatou que muitos deles sofreram ou testemunharam assédio ou agressão sexual durante trabalhos em campo.


Ela era uma jovem e entusiasmada estudante de graduação quando viajou para seu sítio de pesquisa nos arredores uma cidadezinha rural em um país estrangeiro. Ela havia passado anos mergulhada em sua pesquisa e, como ocorre com muitos jovens cientistas, o estudo de campo era uma oportunidade vital para ganhar experiência e avançar sua carreira.

O assédio começou com perguntas íntimas sobre sua vida amorosa e comentários sexualmente sugestivos sobre seu corpo. De início, ela até entrou na brincadeira, trocando comentários provocantes com seus colegas majoritariamente homens. Mas ela já estava desconfortável quando colegas começaram a brincar que a venderiam para a prostituição. De repente, fotos pornográficas começaram a aparecer em seu espaço de trabalho privativo.

Quando caminhava desacompanhada pela cidade vizinha, assovios, chamados constrangedores e mãos desaforadas de homens locais a apalpavam e seguiam. No trabalho, ela só se sentia um pouco mais segura. A brincadeira tinha saído completamente do controle. Ao confrontar seu professor sobre a situação, ele lhe disse que ela estava sendo exageradamente sensível. O relacionamento deles deteriorou e ele acabou revogando sua promessa de financiar seus estudos de graduação.

A cientista postou sua história anônima no blog que a professora de antropologia Kathy Clancy, da University of Illinois, mantinha no site da Scientific American em2012. A história é uma de muitas que Clancy postou no blog e, de acordo com uma nova pesquisa liderada por ela mesma, é também um aspecto perturbadoramente comum em pesquisas de campo científicas.

Uma pesquisa envolvendo 142 homens e 516 mulheres de diversas disciplinas científicas constatou que muitos deles sofreram ou testemunharam assédio ou agressão sexual em trabalhos de campo.

Um relatório com a análise dos dados, divulgado em 16 de julho na publicação científica PLoS ONE, constatou que 64% dos entrevistados afirmaram ter sofrido assédio sexual e mais de 20% relataram ter sido vítimas de agressão sexual.

A pesquisa também estabeleceu que a maioria das vítimas eram pesquisadores jovens; estudantes de graduação ou pós-doutorandos. Cinco dos entrevistados que relataram assédio estavam no ensino médio na época do incidente. E, embora homens fossem tão vitimados quanto mulheres, a maioria teve problemas com seus pares; enquanto a maioria das mulheres foi abordada por superiores.

Embora exista uma extensa literatura sobre assédio e agressão sexual em meios científicos, como hospitais e campi universitários, esse é o primeiro estudo que examina a questão em estudos de campo científicos.

As viagens podem durar semanas ou meses, levando cientistas a áreas selvagens e remotas, longe de casa e de sistemas de suporte. E a pesquisa constatou que em campo, enquanto muitos cientistas não experimentam nenhum tipo de assédio, outros são vitimados. E quando isso acontece, eles muitas vezes não sabem como lidar com a situação.

Katie Hinde, uma coautora do estudo e bióloga evolutiva na Harvard University, que tem anos de experiência em campo, confessou ter sido levada às lágrimas ao ler as respostas da pesquisa.

“Eu lia uma série de histórias angustiantes de pessoas que sofrem atos inquestionavelmente abusivos dentro de suas próprias equipes de pesquisa, e o próximo registro na pesquisa era alguém dizendo que essa avaliação era estúpida e que isso não acontece”, desabafou Hinde em uma entrevista.

“O verdadeiro resultado de nosso estudo é que isso está acontecendo em números consideráveis com trainees [estagiários]; portanto, com pessoas que podem ser estudantes ou pós-doutorandos; pessoas realmente vulneráveis”, acrescentou.

Uma preocupação urgente para cientistas climáticos — e seus patrocinadores

A ciência climática é uma disciplina intensiva em trabalhos de campo. Estudar suas mudanças, passadas ou presentes, pode enviar pesquisadores ao Ártico ou à Amazônia, inserindo pequenas equipes de pesquisa em áreas isoladas.

Yarrow Axford, uma professora de ciências da Terra na Northwestern University, em Chicago, Illinois, que não esteve envolvido no estudo, escreveu em um e-mail que os dados mostram “o que acredito que muitos de nós que trabalhamos em ciência baseada em pesquisa de campo temos vivenciado, ou pelo menos suspeitávamos: que a cultura do trabalho em campo pode ser hostil a mulheres, tanto de modo sutil como mais descarado”.

“O estudo sugere que mulheres têm um bom motivo para serem cuidadosas como e com quem trabalham, e isso de fato é uma realidade lamentável a ser adicionada à lista de barreiras que podem excluí-las da ciência baseada em campo”, criticou Axford, acrescentando que ela mesma nunca experimentou pessoalmente qualquer tipo de assédio ou agressão.

Quando se trabalha em campo pode ser impossível evitar qualquer tipo de situação desconfortável. Há alguns anos, Axford estava em um estudo de campo e pegava voos de helicóptero em um remoto aeroporto ártico. O único banheiro no aeroporto estava “abarrotado do chão ao teto” com pornografia gráfica.

“Toda vez que tive que usar aquele ‘maldito’ banheiro, eu tinha que sair de lá entrando em uma sala cheia de pilotos masculinos e funcionários aeroportuários”, relembrou.

“Isso não é nada bom, mas acho que considero um certo desconforto social em campo como o preço do que estou fazendo para viver”.

Mas, enquanto todos cientistas têm de aceitar certo desconforto quando estão em campo, ela acrescentou que o assédio sexual precisa se tornar um ponto mais focal no planejamento dessas viagens de estudos.

Axford está se preparando para partir em uma viagem de estudo de campo na Groenlândia nos próximos dias e recentemente tornou-se responsável por estudos de campo que envolvem estudantes. Agora ela está considerando falar mais francamente com seus alunos, e com o resto de sua equipe, sobre uma política de tolerância zero para assédio em seus briefings [reuniões preparatórias de atividades] pré-campo.

Jeff Altschul, o presidente da Sociedade para Arqueologia Americana (Society for American Archaeology), que não esteve envolvido no estudo, declarou ao jornalUSA Today que patrocinadores da pesquisa de campo também precisam assumir mais responsabilidade. 

Axford, por sua vez, manifestou a esperança de que o estudo “chegará às mãos [ao conhecimento] de muitos pesquisadores influentes, e fará um ‘monte’ de pessoas pensarem sobre como fazer seus acampamentos seguros para todos”.

“Com base nesse estudo, parece que temos um longo caminho à frente para tornar isso uma realidade”, acrescentou.

“O que acontece em campo, morre em campo”

Os pesquisadores recrutaram entrevistados através de e-mails e redes sociais como Twitter, Facebook e LinkedIn. Os resultados preliminares da pesquisa foram divulgados no ano passado. Dos 122 entrevistados no campo da antropologia biológica, mais da metade relatou ter experimentado ou testemunhado assédio ou agressão sexual.

Katie Hinde espera que os resultados diminuam à medida que mais cientistas respondam à pesquisa, o que normalmente é o caso quando o tamanho de uma amostra aumenta. Nesse caso, porém, os resultados da realidade pioraram.

Ela até recebeu e-mails de cientistas que disseram ter recusado participação na pesquisa, porque reviver suas experiências seria muito traumático.

Pesquisas são inerentemente limitantes. Clancy, Hinde e suas equipes tentaram garantir um equilíbrio de entrevistados que passaram ou não por assédio, mas pode ser difícil controlar quem responde francamente. Dito isso, Hinde afirmou que seus resultados parecem consistentes com outras pesquisas sobre assédio, que se concentraram mais em experiências em outros ambientes científicos, como hospitais, campus universitários, ou nas forças armadas.

“Onde quer que estudos de assédio sexual tenham sido realizados, seja nas áreas de medicina, nas forças armadas, em campi universitários, os números registrados são bastante elevados e consistentes com os números em nosso estudo”, salientou Hinde, acrescentando “e esses são estudos que utilizam diferentes métodos para acessar essas informações”.

As implicações para a ciência poderiam ser profundas. Em uma profissão historicamente dominada por homens, o assédio ou a agressão sexual durante estudos de campo poderiam afastar jovens cientistas talentosas antes mesmo que suas carreiras tenham de fato começado.

Hinde garantiu que as políticas de assédio das instituições financiadoras do estudo de campo, como uma universidade, se aplicariam aos sítios pesquisados. Mas muitas pessoas simplesmente não sabem disso de acordo com as respostas à pesquisa. Embora não haja muitos dados para sustentar uma resposta aparentemente coletiva, Hinde informou que muitos entrevistados descreveram uma atitude do tipo “o que acontece em campo, morre em campo”.

“Suponho que, sim, alguns acadêmicos consideram o ‘campo’ diferente de outras áreas de trabalho, como o escritório, o laboratório ou a sala de aula, de uma forma que relaxa ou suspende normas de comportamento aplicáveis ao local de trabalho”, admitiu ela em um e-mail de follow-up.

Esse tipo de comportamento durante estudos em campo, um período vital no desenvolvimento da carreira de um jovem cientista, se não for um componente exigido para sua graduação, “tem implicações para todas as ciências”, advertiu Hinde.

“Resumindo: suspeito fortemente que todas essas experiências desempenham um papel no por que as pessoas abandonam a ciência e isso empobrece a todos nós”, resumiu Hinde. “Isso empobrece o esforço científico”.
Scientific American Brasil

À venda: seu nome em uma prestigiada publicação científica

Pesquisas constatam irregularidades preocupantes em artigos científicos

Shutterstock
Nos últimos anos sinais de desonestidade na literatura revisada por pares apareceram por todo o universo publicações científicas.


Por Charles Seife

Klaus Kayser tem publicado periódicos científicos eletrônicos há tanto tempo, que ainda se lembra quando os enviava a assinantes em disquetes.

Seus 19 anos de experiência o deixaram perfeitamente ciente do problema de fraudes científicas. Em sua opinião, ele toma medidas extraordinárias para proteger a publicação que edita atualmente: Diagnostic Pathology.

Para impedir que autores tentem fazer passar imagens de microscópio copiadas da internet como se fossem suas próprias, ele exige que eles também lhe enviem as lâminas de vidro originais (junto com os artigos).

Mas, apesar de sua vigilância, sinais de possíveis más condutas em pesquisas se infiltraram em alguns artigos publicados em Diagnostic Pathology.

Seis dos 14 artigos da edição de maio de 2014, por exemplo, contêm suspeitas repetições de frases e outras irregularidades. Quando a Scientific American alertou Kayser, ele aparentemente não estava ciente do problema. “Ninguém me disse isso”, defendeu-se. “Sou muito grato a vocês”.

A Diagnostic Pathology, de propriedade da editora Springer, é considerada uma publicação científica respeitável. Sob o comando de Kayser, seu “fator de impacto”, uma medida grosseira da reputação de uma publicação especializada, baseada no número de vezes que um artigo é citado na literatura científica publicada, é 2,411, o que a coloca solidamente nos 25% superiores de todas as publicações científicas monitoradas pela Thomson Reuters em sua publicação Journal Citation Reports; e ocupa o 27º lugar do total de 76 periódicos de patologia classificados.

A publicação de Kayser não está sozinha.

Nos últimos anos, sinais semelhantes de trapaças, ou desonestidade, na literatura revisada por pares surgiram em várias edições do universo de publicações científicas, inclusive nas pertencentes a potências editoriais como a Wiley, Public Library of Science, Taylor & Francis e o Nature Publishing Group (que publica aScientific American).

A aparente fraude está ocorrendo à medida que o mundo de publicações e pesquisas especializadas passa por rápidas mudanças.

Cientistas, para os quais artigos publicados são o caminho para promoções, estabilidade de emprego/cargo ou via de apoio para subvenções, estão competindo mais acirradamente que nunca para conseguir a inclusão de seus artigos em periódicos revisados por pares.

Embora publicações científicas estejam proliferando na internet, a oferta ainda é incapaz de acompanhar a incessante demanda por veículos (outlets) científicos respeitáveis.

A preocupação é que essa pressão possa levar à desonestidade, à fraude.

Os artigos duvidosos não são fáceis de detectar. Tomados individualmente cada trabalho de pesquisa parece legítimo. Mas em uma investigação realizada pelaScientific American, que analisou a linguagem empregada em mais de 100 artigos científicos, foram encontradas evidências de alguns padrões preocupantes — sinais do que parece ser uma tentativa de burlar o sistema de revisão por pares em escala industrial.

Um dos artigos publicados na edição de maio de 2014 de Diagnostic Pathology, por exemplo, superficialmente parece ser uma típica metanálise da literatura revisada por pares. Seus autores, oito cientistas da Universidade Médica de Guangxi, na China, avaliam se diferentes variações em um gene conhecido como XPCpodem ser associadas a câncer gástrico. Eles não encontram nenhuma ligação desse tipo e admitem que seu artigo não é a palavra final sobre o assunto:

“No entanto, é necessário conduzir amplos estudos de amostras, utilizando métodos padronizados imparciais de genotipagem, amostras homogêneas de pacientes com câncer gástrico, e controles bem estabelecidos (com condições muito parecidas). Além disso, interações gene-gene e gene-ambiente também deveriam ser consideradas na análise. Estudos desse tipo, que levam em conta esses fatores, talvez possam levar futuramente à nossa melhor e mais abrangente compreensão da associação entre os polimorfismos XPC e o risco de câncer gástrico”.

Essa é uma conclusão perfeitamente normal para um artigo perfeitamente comum. Não é nada que devesse disparar quaisquer sinais de alarme.

Mas compare-o com um trabalho publicado vários anos antes em European Journal of Human Genetics (de propriedade do Nature Publishing Group), uma metanálise sobre se variações em um gene conhecido como CDH1 poderiam ser associadas ao câncer de próstata (CPa) e encontrará o seguinte comentário:

“No entanto, é necessário conduzir amplos ensaios utilizando métodos padronizados imparciais, pacientes homogêneos com PCa e controles bem combinados, com avaliação “cega” (desconhecendo) dos dados. Além disso, interações gene-gene e gene-ambiente também deveriam ser consideradas na análise. Estudos desse tipo, que levam em conta esses fatores, talvez possam levar futuramente à nossa melhor e mais abrangente compreensão da associação entre o polimorfismo CDH1—160 C/A e o risco de CPa”.

O palavreado é praticamente idêntico, inclusive a estranha frase “levar futuramente à nossa melhor e mais abrangente compreensão”. As únicas diferenças substanciais são os genes específicos (CDH1 em vez de XPC) e a doença (câncer gástrico em vez de PCa).

Esse não é um simples caso de plágio. Muitas equipes de pesquisas aparentemente independentes andaram plagiando a mesma passagem.

Um artigo publicado em PLoS ONE talvez possa levar futuramente à “nossa melhor e mais abrangente compreensão” da associação entre mutações no geneXRCC1 e o risco de câncer de tireóide.

Outro trabalho, publicado em International Journal of Cancer (publicada pela Wiley) pode acabar levando à “nossa melhor e mais abrangente compreensão” da associação entre mutações no gene XPA e o risco de câncer... e assim por diante.

Às vezes há pequenas variações na redação, mas em mais de uma dezena de artigos encontramos uma linguagem quase idêntica com diferentes genes e doenças aparentemente inseridos no parágrafo em questão; como uma versão surreal de Mad Libs, um modelo de jogo de palavras inventado na década de 50, no qual os participantes preenchem lacunas com termos ausentes em uma dada passagem.

A Scientific American encontrou outros exemplos de pesquisas do tipo “preencha as lacunas”.

Uma busca da frase “excluído devido à óbvia irrelevância” recuperou mais de uma dezena de artigos de vários tipos, todos, exceto um, escritos por cientistas da China.

A formulação “utilizando uma forma padronizada, dados de estudos publicados” também produz mais de uma dezena de artigos de pesquisa, todos da China. O chamado gráfico de dispersão em funil, funil invertido ou “árvore de natal” (funnel plot, em inglês) de “Begger” detecta dezenas de casos, todos procedentes da China.

“Esse sistema de verificação é particularmente revelador. Não existe uma coisa como um funil de Begger.“Ele simplesmente não existe. Essa é a questão”, salienta Guillaume Filion, um biólogo no Centro para Regulação Genômica em Barcelona, na Espanha (pdf).

Dois estatísticos — Colin Begg e Matthias Egger — inventaram, cada um, testes e ferramentas para avaliar o viés de uma publicação e procurar preconceitos que se infiltramem metanálises. O“funil de Begger” parece ser um híbrido acidental da fusão dos dois nomes.



Filion detectou a proliferação de testes “de Begger” por acaso.

Enquanto procurava por tendências em artigos em publicações científicas médicas, ele encontrou artigos que tinham títulos quase idênticos, escolhas similares de gráficos e os mesmos erros peculiares, como o “funil de Begger”.

Ele presume que os trabalhos vieram da mesma fonte, embora tenham sido ostensivamente escritos por diferentes grupos de autores. “É difícil imaginar que 28 pessoas inventassem independentemente o nome de um teste estatístico”, argumenta Filion. “É por isso que ficamos muito chocados”.

Uma rápida busca na internet revela serviços que oferecem, por uma taxa, organizar a autoria de trabalhos a serem publicados em veículos revisados por pares. Eles parecem atender a pesquisadores que procuram uma maneira rápida [e desonesta] para serem publicados em um periódico científico de prestígio internacional.

Em novembro, a Scientific American pediu a um repórter que fala mandarim, a língua oficial da China, que contatasse a MedChina, que oferece dezenas de contratos/acordos de “temas científicos para venda” e “transferência de artigos” para publicações científicas.

Posando como uma pessoa interessada em comprar uma autoria científica, o repórter conversou com um representante da entidade, que lhe explicou que os artigos já estavam mais ou menos aceitos para publicação em periódicos especializados revisados por pares. Aparentemente, tudo o que precisava ser feito era um pouco de trabalho de edição e revisão.

O preço, por sua vez, dependia, em parte, do fator de impacto da publicação-alvo e de se o artigo era experimental ou metanalítico.

Nesse caso, o representante da MedChina ofereceu a autoria de uma metanálise que associava uma proteína ao câncer de tireóide papilar destinada a ser publicada em um periódico com fator de impacto de 3,353. O custo: 93 mil renmimbis (RMB, a moeda oficial da China) equivalentes a cerca de US$ 15 mil.

O veículo mais provável pretendido para o artigo mediado pela MedChina é a publicação Clinical Endocrinology; um de cinco periódicos científicos com fator de impacto de 3,353 e o mais próximo do assunto descrito.

“Obviamente, essa é uma questão de grande preocupação”, admite John Bevan, um editor sênior da publicação. “Estou alarmado ao pensar que isso está acontecendo e inundando o mercado”.

Aproximadamente duas semanas depois de ter sido contatado pela Scientific American, Bevan confirmou que um artigo de aspecto suspeito sobre biomarcadores para câncer de tireóide papilar, que teve o acréscimo de um autor durante o processo de revisões, foi identificado e rejeitado.

Grande parte do financiamento para esses trabalhos suspeitos vem do governo chinês.

Dos primeiros 100 artigos identificados pela Scientific American, 24 haviam recebido financiamento da Fundação Nacional de Ciência Natural da China (NSFC, na sigla em inglês), uma agência governamental de financiamento equivalente a Fundação Nacional de Ciência dos Estados Unidos. Outros 17 reconheceram que obtiveram subvenções de outras fontes do governo.

Yang Wei, presidente da NSFC, confirmou que os 24 trabalhos suspeitos identificados pela Scientific American foram posteriormente encaminhados ao Birô de Disciplina, Inspeção, Supervisão e Auditoria da Fundação (pdf), que investiga várias centenas de alegações de má conduta a cada ano.

“Dezenas de ações disciplinares têm sido tomadas pela NSFC anualmente por má conduta em pesquisas, embora casos de ghostwriting (artigos assinados por “escritores-fantasmas”, em tradução literal) sejam menos comuns”, informou Yang por e-mail.

No ano passado, uma das ações disciplinares da entidade envolveu um cientista que comprou uma proposta de financiamento de um site na internet. Yang salienta que a NSFC toma medidas para combater má conduta, o que inclui a recente instalação de uma “verificação de similaridade” para detectar possíveis plágios em propostas para financiamentos.

(No ano em que o sistema entrou on-line a verificação encontrou várias centenas de casos de “similaridades consideráveis” em um total de cerca de 150 mil solicitações de verbas, informou Yang.) Mas quando se trata de “fábricas de artigos acadêmicos não temos muita experiência e certamente ficaremos felizes em ouvir suas sugestões”, admitiu ele.

Alguns editores só estão se inteirando agora do problema das “fábricas de artigos” chinesas.

“Eu não estava ciente de que havia um mercado para autorias por aí”, reconhece Jigisha Patel, diretor editorial associado da BioMed Central para integridade de pesquisa. Agora que a editora de publicações científicas (de propriedade da Springer e publicadora da Diagnostic Pathology) foi alertada para o problema, “podemos investigar isso e lidar com isso”, garante Patel.

Duas semanas após ter sido contatada pela Scientific American, a BioMed Central anunciou que havia identificado cerca de 50 manuscritos que tinham sido avaliados por pares revisores falsos. A editora declarou ao Retraction Watch blog [um blog que monitora retratações acadêmicas] que “uma terceira parte pode estar envolvida, e influenciando o processo de revisão por pares”. É possível que esses manuscritos tenham vindo de fábricas de artigos.

A Scientific American conseguiu verificar os títulos e autores de cerca de meia dúzia deles. Todos parecem muito similares em estilo e assunto a outras metanálises escritas por fábricas de artigos, e todos eram de grupos de autores chineses.

Outras editoras começaram a combater o fluxo de materiais duvidosos.

Damian Pattinson, diretor editorial da PLoS ONE, informa que a publicação instituiu salvaguardas em abril passado. “Toda metanálise que recebemos tem que passar por uma verificação editorial específica... “que força autores a fornecerem informações adicionais, inclusive uma justificativa do porquê eles realizaram o estudo, em primeiro lugar”, explica.

“Como resultado disso, a proporção de artigos que de fato são encaminhados a revisores caiu cerca de 90%. Portanto, estamos muito cientes desse problema”.

Ainda assim, a lista compilada pela Scientific American contém quatro artigos suspeitos que foram publicados em PLoS ONE depois que as salvaguardas foram instituídas, e a autoria de um próximo artigo da PLoS ONE foi colocada à venda pela MedChina, enquanto o material estava sendo escrito.

Quando perguntamos a Pattinson sobre esses artigos, ele respondeu: “Corrigiremos e retrataremos artigos se houver qualquer indicação de má conduta. A questão é um problema, do qual estamos muito cientes”.

A BMC, Public Library of Science e outras editoras utilizam software de verificação de plágio para tentar reduzir fraudes. Mas software nem sempre resolve esse problema em particular em publicações científicas, adverte Patel, acrescentando: “fábricas de artigos acrescem mais uma camada de complexidade ao problema. Isso é muito preocupante”.

No momento, editoras estão travando uma batalha contra a corrente, muito difícil. “Sem informação privilegiada (de insiders) é muito difícil policiar isso”, queixa-se John Bevan da Clinical Endocrinology.

A publicação e sua editora, a Wiley, estão tentando fechar brechas no processo editorial para detectar mudanças tardias suspeitas em autorias e outras irregularidades. “É preciso aceitar que pessoas estão submetendo trabalhos em boa fé e honestidade”, argumenta Bevan.

Essa é, de fato, a ameaça essencial.

Agora que várias empresas descobriram como ganhar dinheiro em cima da má conduta científica, essa suposição de honestidade está correndo o risco de se tornar um anacronismo.

“Todo o sistema de revisão por pares funciona na base da confiança”, salienta Damian Pattinson, e acrescenta que, se é questionada, o sistema tem dificuldade para lidar com isso.

“Temos um problema aqui”, admite Guillaume Filion. Ele acredita que o dilúvio está apenas começando. “Há tanta pressão e tanto dinheiro em jogo que veremos todos os tipos de excessos no futuro”.

Reportagem adicional por Paris Liu.

A lista citada da Scientific American contém 100 artigos publicados que parecem ter as características de ciência do tipo “preencha as lacunas”.

A inclusão nela não implica que qualquer dado trabalho tenha sido escrito por uma fábrica de artigos, nem implica que seja definitivamente um plágio. Mas, em vista do padrão de redação e das similaridades desses materiais com outros publicados previamente, acreditamos que eles são dignos de escrutínio por seus editores. >>Ver a lista [em inglês].

Há muito mais artigos suspeitos por aí; e muitos mais são publicados todos os dias. Esses simplesmente são os 100 primeiros que encontramos.

Leituras adicionais (em inglês):

Filion, Guillaume. "A flurry of copycats on PubMed."


Ioannidis J.P.A., Chang C. Q., Lam T. K., Schully S. D., Khoury M. J. "The Geometric Increase in Meta-Analyses from China in the Genomic Era." PLoS ONE 8(6): e65602. doi:10.1371/journal.pone.0065602

Hvistendahl, Mara. "China`s Publication Bazaar." Science, 29 November 2013, pp. 1035–1039. DOI: 10.1126/science.342.6162.1035
Revista Scientic American Brasil

sábado, 14 de novembro de 2015

Ameaça à Constituição pacifista

Com o pretexto de se emancipar dos Estados Unidos, o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, quer desvirtuar a Constituição pacifista de seu país. O dirigente mascara assim a sua vontade de fortalecer as forças armadas, apesar da forte oposição da população
por Makoto Katsumata
Setenta anos depois da Segunda Guerra Mundial, ninguém imaginaria uma mobilização semelhante dos japoneses – tanto dos mais velhos, que viveram o conflito, como dos mais jovens, que nem sequer assistiram à queda do Muro de Berlim. Condenando o “golpe de Estado parlamentar” do governo de Shinzo Abe, eles fizeram manifestações diante da Dieta (o Parlamento japonês) todos os dias durante mais de um ano. Só em 18 de julho, mais de 100 mil pessoas foram às ruas.

O primeiro-ministro quer aprovar um projeto de lei sobre segurança que autoriza as Forças de Autodefesa (nome oficial das forças armadas) a participar de operações no exterior – o que ele chama de “autodefesa coletiva” – em dois casos: quando o Japão ou um de seus aliados for atacado e quando não houver outro meio de proteger o povo.1 Todavia, a Constituição japonesa pontifica, no artigo 9º, que “o povo japonês renuncia para sempre à guerra como direito soberano da nação, tanto quanto à ameaça ou ao emprego da força como instrumento de regulamentação de conflitos internacionais. Tendo em vista esse objetivo, não manterá forças terrestres, navais e aéreas nem qualquer outro potencial de guerra. O direito de beligerância do Estado não será reconhecido”. Pois é justamente esse direito que o governo Abe pretende restabelecer. Ora, a Constituição só pode ser modificada por dois terços dos votos de cada uma das duas câmaras da Dieta (a dos deputados e a dos conselheiros), e a aprovação deve obrigatoriamente ser submetida a referendo. Este de modo algum a confirmaria nos dias atuais, pois a população continua traumatizada pela guerra.

Abe, contudo, não foi direto ao artigo 9º. Para começar, durante seu primeiro mandato, procurou obter flexibilidade parlamentar modificando o artigo 96: assim, poderia conseguir emendas constitucionais por maioria simples. Fracassando, dedicou-se a uma “reinterpretação” do artigo 9º que, tal qual exposta no projeto de lei sobre segurança, levaria à sua ab-rogação de fato. É uma “traição à Constituição e à história”, sustenta o constitucionalista Yoichi Higuchi, traduzindo a opinião da maioria dos juristas: segundo uma pesquisa da agência audiovisual NHK, 90% dos especialistas em direito público consultados em junho consideram o projeto de autodefesa coletiva “inconstitucional”.2

Apesar da oposição até de alguns membros do Partido Liberal Democrata (PLD), do primeiro-ministro, o texto foi aprovado por maioria na Câmara dos Deputados no dia 16 de julho. Ainda que a Câmara dos Conselheiros seja contrária, o projeto poderá ser aceito por maioria de dois terços na Câmara dos Deputados, que tem a última palavra.3

Ao mesmo tempo, a impopularidade de Abe nunca foi tão baixa. Segundo uma pesquisa do jornal de economia Nikkei, realizada no fim de julho, 57% da população repudia a votação do projeto de segurança em sessão parlamentar ordinária (26% é a favor) e 50%, contra 38%, desaprova o conjunto da política do primeiro-ministro.4

O grau de rejeição e a tenacidade dos protestos lembram as manifestações de 1960 contra a ratificação do tratado de segurança (e de aumento do poderio militar) nipo-americano, alinhavado pelo primeiro-ministro de então, Nobusuke Kishi. Este, forçado à demissão, era ninguém menos que o avô de Abe. Contudo, a forma e a natureza da contestação atual são diferentes sob vários aspectos. Ela reúne a população como um todo, tanto em Tóquio como nas outras grandes cidades, enquanto a luta dos anos 1960 foi conduzida principalmente por grupos de estudantes e, sobretudo, pela Zengakuren (Federação Japonesa das Associações de Autogestão Estudantil). Além disso, esses movimentos desafiavam frequentemente as forças da ordem, e muitos em suas fileiras acreditavam no socialismo.

Os manifestantes de hoje, ao contrário, não são violentos, apenas zelam pela democracia e multiplicam as formas de protesto: barulho, máscaras e slogans de todos os tipos. Batem-se contra o teor do projeto, mas também contra a forma como o poder pretende impô-lo. Traumatizados pelo terremoto de 11 de março de 2011 e por Fukushima, empobrecidos na vida cotidiana, esses jovens constituem uma geração para a qual “não há futuro feliz”, como nos explica Aiki Okuda, um dos principais membros da ativíssima Rede de Ação Estudantil de Emergência pela Democracia Liberal.

Muitos inscrevem essa lei de segurança no projeto de sociedade do primeiro-ministro: aquilo que ele chama de “Belo Japão”, para retomar o título de seu livro.5 Nova lei de base para a educação com forte sentido nacionalista; lei de “proteção dos segredos de Estado”, de dezembro de 2013, que restringe a liberdade em nome da luta contra os “inimigos internos”...6

Em suma, o primeiro-ministro quer concretizar o velho sonho dos conservadores de acabar com uma Constituição que teria sido imposta pelos norte-americanos, pela força da ocupação dos Aliados após a derrota na Guerra do Pacífico e da Ásia. Seria um passo indispensável a dar em prol de um Japão soberano, de um país novamente “normal”. Isso, porém, é esquecer as circunstâncias históricas. No curso da guerra, o Japão perdeu mais de 3 milhões de vidas. Ainda que a Constituição tenha sido redigida pelos Estados Unidos, quem a aceitou foi um povo farto de guerras e ansioso por viver em paz.7

Com a nova lei, o país, longe de se emancipar dos Estados Unidos, se veria na obrigação de apoiar militarmente esse aliado pelo mundo afora. “Sem o artigo 9º, os dirigentes japoneses não teriam podido dizer ‘não’ à guerra do Iraque”, lembra Higuchi.8

A Constituição de 1947, unanimemente aceita pelos japoneses, começa por este preâmbulo: “Nós, os japoneses [...], decididos a nunca mais sermos testemunhas dos horrores da guerra provocada pela ação do governo, proclamamos que o poder soberano pertence ao povo”. No mesmo espírito, a Carta das Nações Unidas, nascida das cinzas da Segunda Guerra Mundial, visa “preservar as gerações futuras do flagelo de um conflito que duas vezes, no espaço de uma vida humana, infligiu à humanidade sofrimentos indizíveis”.

Aos olhos de alguns observadores estrangeiros e políticos japoneses, essa Constituição pacífica parece ingênua e obsoleta, até mesmo idealista. Entretanto, no contexto internacional de hoje, a vontade de paz não deveria se tornar, ao contrário, uma norma no mundo inteiro? A Ásia teria tudo a ganhar com isso, em vez de se entreter com exercícios militares que simulam um confronto armado.


Makoto Katsumata

Economista, professor da Universidade de Meiji Gakuin (Tóquio) e presidente do Centro de Estudos Internacionais para a Paz.

Ilustração: Daniel Kondo

1 “Estratégia de segurança nacional”, Ministério da Defesa, Tóquio, 2015.

2 Pesquisa com 1.146 juristas. Yahoo News Japan, 7 ago. 2015.

3 A coalizão do PDL e do partido Komei, em princípio pacifista por sua orientação budista, obteve 326 cadeiras de 480.

4 Nikkei Asian Review, Tóquio, 27 jul. 2015.

5 Publicado no Japão em 2006, o livro foi traduzido em inglês: Shinzo Abe, Towards a Beautiful Country: My Vision for Japan [Rumo a um belo país: minha visão para o Japão], Vertical, Nova York, 2007.

6 “State secrecy law takes effect amid protests and concern over press freedom” [Lei de segredo de Estado aprovada em meio a protestos e preocupações com a liberdade de imprensa], The Japan Times, Tóquio, 10 dez. 2014.

7 Cf. Yoichi Higuchi, Constitutionalism in a Globalizing World: Individual Rights and National Identity [Constitucionalismo num mundo globalizado: direitos individuais e identidade nacional], University of Tokyo Press, 2002.

8 “Japan security bills reveals irreconcilable divide between scholars and politicians” [Leis de segurança japonesas revelam discordância irreconciliável entre estudiosos e políticos], The Japan Times, 12 jun. 2015.
Le Monde Diplomatique Brasil

O Brasil caiu na rede



Na cidade e no campo: informações e serviços / Foto: Neide Makiko Furukawa/Embrapa

Por: ALBERTO MAWAKDIYE

Pelo menos em uma cidade brasileira – a paulista Tietê, de 36 mil habitantes e a 131 quilômetros da capital – agendar consultas médicas no sistema público de saúde deixou de ser o martírio amargado pela maior parte da população brasileira. Isso se deve, simplesmente, porque a prefeitura local resolveu adotar, em caráter experimental, um software desenvolvido por um jovem de 20 anos, Vítor Ricardo de Paula. Aluno do curso de tecnologia da informação na Faculdade de Tecnologia (Fatec), no vizinho município de Tatuí, ele pretende usar a ferramenta no seu trabalho de conclusão de curso.

Por meio desse programa de computação, os funcionários da Secretaria de Saúde tieteense, além de agendarem as consultas com a velocidade de um raio, ainda conseguem gerenciar informações sobre o cadastro de ambulâncias, a requisição de viagens, bem como pesquisar o histórico dos doentes. Já os pacientes podem agendar as consultas na unidade de saúde do bairro onde moram, dispensando a ida até a secretaria. “O processo de atendimento nos serviços públicos de saúde é muito burocratizado, pois quase tudo é feito de forma manual. Por que não digitalizá-lo?”, pergunta Vítor, que não recebeu nenhum centavo pela ideia. “Foi o que fiz.”

O projeto de Vítor – que provavelmente será, pouco a pouco, estendido a outras localidades, ajudando a reduzir os graves problemas de atendimento na rede de saúde pública – não surgiu apenas porque ele é uma cabeça iluminada. Vítor pode até ser um gênio da realidade virtual, mas isso de nada adiantaria se a internet não estivesse conquistando um espaço crescente no Brasil e os produtos dela derivados não fossem recebidos, quase sempre, com curiosidade e até mesmo com entusiasmo. Em 2013, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 50,6% dos brasileiros com 10 anos ou mais não haviam usado a internet uma única vez nos últimos 90 dias que antecederam a data da entrevista, mas o país é um dos que mais tem avançado na utilização da rede mundial, cujo serviço, aqui, deixou de ser privilégio das universidades e foi aberto ao público em maio de 1995, portanto, há exatos 20 anos.

Embora ainda esteja abaixo da média da Europa e do leste da Ásia no acesso à internet, o Brasil já deixou há muito para trás a África e o Oriente Médio, por exemplo, e mesmo as Américas, se excluídos o Canadá e os Estados Unidos. Já em números absolutos, é disparado um dos maiores usuários do mundo, um pouco devido ao tamanho de sua população – hoje de 202 milhões de habitantes, a quinta maior do planeta. Ainda segundo a Pnad, em 2013 havia internet em 48% dos 65,1 milhões de domicílios, isto é, em mais de 30 milhões deles.

Assim, usando-se o clássico critério da Organização das Nações Unidas (ONU), que calcula uma média de 4 a 5 habitantes por moradia, o número da internet no Brasil totalizaria, no mínimo, 120 milhões de usuários domésticos, em uma estimativa grosseira, considerando que os bebês e os refratários ao computador deveriam ser excluídos dessa conta. De qualquer maneira, é praticamente o triplo da população da Argentina e o dobro do número de habitantes do Reino Unido e da França.

A expansão não tem se limitado às pessoas físicas, claro. Hoje, é quase impossível encontrar alguma empresa sem um domínio na internet. E na esteira de pioneiros como Aleksandar Mandic e Gustavo Viberti, que nos anos 1990 desenvolveram sites que entraram para a história da internet brasileira, com o Mandic Magic e o site de buscas Cadê?, pequenas companhias de softwares desenvolvem aplicativos que chamam a atenção em todo o mundo e são largamente exportados. Blogueiros principalmente da área de moda (e acessórios) hoje conseguem viver dessa atividade – antes vista como “alternativa” – sem grandes percalços.

Crescimento fulminante

Milhares de empresas também passaram a vender na modalidade online. Em torno de 27% das pequenas e microempresas brasileiras mantêm hoje lojas virtuais, segundo um estudo do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), diante de 14% em 2008 – e novas ferramentas são lançadas quase que a cada semana para o agronegócio, a indústria, as finanças e a saúde. E também para a educação, neste caso, principalmente, para a modalidade de ensino a distância (EaD) que, graças à internet, já responde por cerca de 25% das matrículas no curso superior do país, com a expectativa de alcançar entre 40% e 45% nos próximos anos.

A cultura em seu sentido mais estrito também tem se beneficiado. A Editora Unesp, ligada à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, por exemplo, vem publicando em seu site uma média de 90 a 100 livros digitais por ano, praticamente todos eles trabalhos de professores e pesquisadores dos vários campi dessa instituição de ensino no interior de São Paulo, nas mais diferentes áreas, da engenharia à música, da literatura à biologia e ciências sociais. “Antes, o acesso a esse material era absolutamente restrito, pois raramente eram publicados em livro impresso. Existia o receio da falta de demanda”, diz o presidente da editora, Jézio Hernani Gutierre. “Hoje, os trabalhos podem ser lidos pelos interessados em suas versões digitais. A internet está permitindo a democratização da mais fina produção acadêmica.”

Nem os transportes escaparam do upgrade proporcionado pela internet. O baixíssimo intervalo entre os trens (headway) do metrô de São Paulo, atualmente de 99 segundos – o terceiro menor do mundo –, seria impraticável, por exemplo, sem o computador e os sofisticados aplicativos de controle de tráfego. Os serviços de táxi também se desenvolveram muito com a disseminação de dispositivos embarcados no telefone celular, que localizam os condutores cadastrados mais próximos do local onde o usuário se encontra. Esse serviço, ainda um pouco confuso por falta de uma melhor regulamentação, é, em geral, gratuito.

“É impossível não reconhecer os avanços que a rede mundial de computadores trouxe para o país”, ressalta Dane Avanzi, vice-presidente da Associação das Empresas de Radiocomunicação do Brasil (Aerbras). “A internet mudou a maneira das pessoas de se relacionar, simplificou o trabalho das corporações e governos, extinguiu profissões e fez muitas outras surgirem. Tudo isso, em um exíguo espaço de duas décadas.”

A internet também já adquiriu significativo peso econômico. Somente o comércio eletrônico, por exemplo, registrou em 2014 um avanço de 24% na comparação com 2013, com a receita chegando a R$ 35,8 bilhões como resultado de 103,4 milhões de pedidos – quantidade 17% maior que o ano anterior. Ao todo, o Brasil soma hoje 61,6 milhões de e-consumidores únicos, aqueles que já fizeram pelo menos uma compra online. Até o fim de 2015, prevê a consultoria E-bit, o e-commerce atingirá um faturamento de R$ 43 bilhões, volume 20% maior do que em 2014.

Mas a expansão econômica da web no Brasil foi bem mais além. De acordo com um levantamento do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), divulgado em São Paulo no último mês de maio, entre 2012 e 2014 as empresas “não comerciais”, atuantes no segmento da internet, experimentaram um aumento ainda maior no faturamento, da ordem de 50,1%, pulando de R$ 96,4 bilhões para R$ 144,7 bilhões. O montante equivale a 1,74% do faturamento de todas as empresas brasileiras. “É difícil encontrar em dois anos um aumento tão alto”, destaca Gilberto Luiz do Amaral, presidente do conselho superior e coordenador de estudos do IBPT, segundo quem esse faturamento é maior do que o de 79% dos outros setores da economia. Esse nicho da internet tornou-se, por tabela, uma grande fonte de receitas para o governo – ocupa hoje a 14ª colocação no ranking de recolhimento de tributos federais. De cada R$ 100 da arrecadação no âmbito da economia, R$ 1,60 vem das empresas da área – ou 1,6% do total. Em 2005, a porcentagem era de 0,43%.

Um “brinquedão”

Considere-se que no levantamento do IBPT foram incluídas apenas as empresas do segmento de representação da Associação Brasileira de Internet (Abranet), participantes das divisões 61, 62 e 63 da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE): informação, telecomunicações e atividades de suporte para os setores de transporte, logística e turismo. Ficaram de fora, portanto, além do comércio eletrônico, áreas que são, igualmente, importantes usuárias da internet, como o agronegócio, o comércio eletrônico tradicional, a indústria e a prestação de serviços em geral, cujo faturamento e tributos originados indiretamente da web não são medidos separados de suas atividades fins. Ou seja, a internet deve estar movimentando tamanho montante de dinheiro no conjunto da economia do país que não seria inexato classificá-la hoje como um negócio milionário.

O melhor de tudo é que o segmento também já um grande usuário de mão de obra – que não se limita mais às tradicionais funções de digitador, analista de sistemas, webdesigner e assistente técnico. Entre 2012 e 2014, foram criados nas empresas consideradas de internet pelos critérios da CNAE, mais de 51 mil postos de trabalho, com um salário médio anual de R$ 40,3 mil. O próprio número dessas empresas vem crescendo substancialmente. O aumento entre 2012 e 2014 foi de 27,56%. A maioria esmagadora dos negócios – mais de 95% – é de pequeno e médio porte.

O mais fascinante é que a evolução da internet aqui foi acontecendo com a incorporação, mais ou menos simultânea, dos muitos e rapidíssimos avanços desta tecnologia, que surgiu nos Estados Unidos para uso militar e, posteriormente, acadêmico, entre o final dos anos 1960 e o começo dos anos 1970 – apesar de o Brasil ser, reconhecidamente, um anão em pesquisa e inovação tecnológicas. Os computadores “tubões” dos anos 1990, com conexão discada, lenta, instável e com uma capacidade de movimentação e armazenamento de dados similar à de uma cabeça de alfinete, logo dariam lugar a micros menores, mais leves, bem desenhados e muito mais potentes e velozes.

A melhoria do sistema de telecomunicações nacional disseminou a imprescindível banda larga – embora a velocidade média de conexão dos brasileiros seja ainda de 3,4 megabits por segundo, deixando-a em um pálido 89o lugar no ranking mundial desse quesito e em 8o, na América Latina, atrás de Uruguai, Chile, México, Argentina, Colômbia, Peru e Equador.

De qualquer forma, não houve um avanço sequer que o Brasil tenha perdido. Os primeiros notebooks – microcomputadores portáteis – foram lançados aqui meses depois dos Estados Unidos. Mais recentemente, a web brasileira também invadiu o celular, transformando-o de mero telefone móvel em smartphone, no qual fazer ou receber chamadas é só uma entre várias funções.

Aliás, a adoção dessa nova tecnologia pode ser considerada um verdadeiro fenômeno de massa no Brasil. Mais da metade das conexões são hoje realizadas por smartphones ou tablets. Na região norte do país, onde a telefonia fixa e a banda larga ainda ficam um pouco a dever no aspecto técnico, o uso exclusivo desses dois equipamentos para o acesso à web chega a impressionar: no Amapá, o estado campeão, 43% são feitos a partir da telefonia móvel; no vizinho Pará, 41,2%; no Amazonas, 39,6% e, em Roraima, 32%. “Gosto de baixar músicas, passar mensagens para os amigos, ler as notícias, mexer com fotografias, enfim, o smartphone é uma internet ambulante, um brinquedão”, afirma o músico paulistano Moacyr Oliveira, vocalista da banda de rock underground Diskerda. Ele também utiliza bastante o seu computador portátil para acessar as redes sociais, principalmente o Facebook, onde posta suas músicas, clássicos do rock e contundentes fotos e mensagens sobre o meio ambiente e a questão indígena.

O Facebook alcançou no Brasil uma popularidade jamais sonhada antes por algum criador de rede social: o número de usuários mensais já passou de 90 milhões, quantidade só inferior à dos Estados Unidos. Mais do que isso, muitos passam horas a fio utilizando o serviço (e os seus aplicativos WhatsApp e Instagram) de um modo que, segundo especialistas, talvez não seja o mais saudável. O professor de ciências econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Fábio Roberto Ferreira Borges, por exemplo, escreveu a várias mãos um incisivo artigo onde denuncia o Facebook como “um mero espaço para a exibição de comportamentos narcisistas de autopromoção, onde o indivíduo engendra uma grande narrativa do eu”, e no qual as opiniões emitidas sobre política, economia, sociedade e outros assuntos de cunho geral são muitas vezes arbitrárias e despidas de reflexão.

Mal empregada

Borges e seus colegas estão bem acompanhados nessa avaliação. O respeitadíssimo escritor e pensador italiano Umberto Eco disse recentemente: “Num mundo com mais de 7 bilhões de pessoas, você não concordaria que há muitos imbecis? Não estou falando ofensivamente quanto ao caráter das pessoas. O sujeito pode ser um excelente funcionário ou pai de família, mas ser um completo imbecil em diversos assuntos. Com a internet e as redes sociais, o imbecil passa a opinar a respeito de temas que não entende. Mas é claro que a internet tem seu valor”.

Alguns críticos mais generosos atribuem esse comportamento não lá muito dignificante antes à falta de “maturidade digital” de parte dos internautas, principalmente em países como o Brasil, cuja população se desabituou a discussões em praça pública depois de amargar longos 21 anos de ditadura (1964/1985) e onde o nível cultural médio, infelizmente, também não é dos melhores. Para eles, no fundo, muitos brasileiros não saberiam mesmo como lidar com a internet – não compreenderiam bem essa mídia.

Na verdade, desse ponto de vista, não seria só nas redes sociais que a internet é mal usada no país – e muitas vezes até para objetivos extravagantes, como buscas amorosas ou discussões de relacionamento –, mas em vários outros nichos, onde os sintomas dessa possível falta de maturidade podem ser percebidos com facilidade. Desta vez, não exatamente no excesso de voluntarismo, mas no seu oposto, a falta de ousadia para aproveitar a miríade de possibilidades oferecidas pela internet.

Isso acontece especialmente no universo das pequenas e microempresas (as grandes e médias já são geralmente bem informatizadas, com muitas fábricas contando, inclusive, com ferramentas de automação industrial como a robótica). A despeito da informação de que uma entre quatro pequenas empresas dispõe de lojas virtuais em seus sites, a utilização não vai muito além disso (mesmo assim, com intensidade bastante variável) e da comunicação direta com parceiros, fornecedores e clientes.

“É rara a pequena empresa que utiliza softwares de gestão empresarial para controlar estoques, contas a pagar etc.”, diz Jairo Lobo Migues, consultor do Sebrae de São Paulo. “Esses processos continuam sendo basicamente manuais. Um desperdício, com tantos programas baratos e eficientes no mercado.” Migues atribui essa subutilização a uma questão de mentalidade: sempre acuado por dificuldades financeiras, o pequeno empresário brasileiro costuma ser muito imediatista e evita investir em equipamentos cujo retorno econômico não seja de curto prazo. Essa distorção se repete em escala ainda maior no agronegócio. Segundo Silvio Roberto Medeiros Evangelista, chefe de pesquisa e desenvolvimento da Embrapa Informática Agropecuária, em 2012 a internet estava presente em apenas 10% dos domicílios rurais (incluindo aí tanto as propriedades produtivas propriamente ditas como os sítios e chácaras) e o computador, em 16%.

O uso da internet no controle da produção e da administração estava concentrado, compreensivelmente, nas propriedades maiores e mais mecanizadas, cujos gestores possuíam maior nível de escolaridade. “Os grandes proprietários sabem que ela diminui custos, aumenta a competitividade, facilita o acesso às informações e às novas tecnologias”, afirma Evangelista. “Já os pequenos, quando estão cientes dessas vantagens, muitas vezes não têm recursos para adquirir computadores e softwares nem a capacitação necessária para sua utilização.”

Problemas à parte, o fato é que a internet encontrou no Brasil terreno fértil para um desenvolvimento sustentável. A contribuição dessa tecnologia para os negócios, para a ampliação do debate democrático (apesar de tudo) e para a disseminação do conhecimento está aí para todos verem. O Brasil, sem dúvida, está, pouco a pouco, ficando mais inteligente e conectado ao mundo com a web. E, com o tempo, também ficará mais rico graças a ela quando souber aproveitar todo o potencial que essa extraordinária inovação oferece para quem se dispõe a decifrá-la.
Revista Problemas Brasileiros